Ana
pousou o cotovelo esquerdo na mesa da esplanada e o queixo na palma da mão; os
dedos tapavam-lhe a boca e as lentes dos óculos escuros os olhos.
Provavelmente, se pudesse, não tapava nada mas também já não estava ali.
Respirou fundo, afastou os dedos para o lado, inclinando um pouco a cabeça para
a esquerda e tentou falar sem conseguir. Tinha um nó na garganta, um nó mesmo,
um nó que a impedia de falar mas também de desabar num choro compulsivo ou numa
torrente de palavrões e injurias. Ele parecia-lhe calmo, quase feliz.
Parecia-lhe que, se ele não o estivesse a evitar, os seus lábios cresceriam até
tocar nas orelhas num sorriso ofensivo. Maldoso. Tornou a respirar fundo,
tentando perceber se, se insistisse em falar e, assim, em perder parte do auto-domínio,
se chorava ou se o mandava à merda mas não conseguia decidir-se: eram muitos
ses.
–
Se não me dizes nada, vou-me embora – forçou ele, convencendo-a definitivamente
que a única coisa a fazer era chamar-lhe nomes: chorar estava fora de questão.
Ana
sorriu e encolheu os ombros. Mordeu o lábio superior, enquanto desapoiava o
queixo e o olhava de frente. Tirou os óculos.
–
Queres que eu te diga o quê? – ouviu-se perguntar.
–
Qualquer coisa.
–
Qualquer coisa, o quê? – Fechou as hastes dos óculos e pousou-os na mesa. –
Qualquer coisa que te diminua a culpa? Que te ajude a ultrapassar o que
fizeste? – Rodou os óculos com o indicador esquerdo. – Qualquer coisa com que
possas justificar a merda de pessoa que és?
–
Se é para desconversares, a conversa acaba já aqui.
–
És uma merda, o que é queres que eu te diga?
–
Eu não estou a ser mal-educado…
–
Foda-se – Ana falava sem levantar a voz. – E eu estou? Por dizer merda e
foda-se? – Paulo baixou a cabeça, confirmando. Ana sorriu tristemente. – Ou por
te comparar à merda sem que a merda tenha culpa nenhuma?
–
Eu podia não te ter dito nada – disse ele como se fizesse diferença.
–
Podias mas o problema não é dizeres, foi fazeres. Estares a dizê-lo agora...
–
Quis ser honesto contigo…
–
Obrigadinho. – Ana abanou a cabeça e tornou a respirar fundo. – Mas não, não
quiseste ser honesto comigo, quiseste aliviar-te da culpa. Quiseste
transmiti-la, passar-ma. Contaminar-me com as tuas merdas. – Sentia-se cada vez
mais lúcida e calma. – Se quisesses ser honesto não fazias, o resto são
desculpas. É a forma que estás a arranjar para viveres contigo e, de preferência,
conforme a minha reacção, de justificares à posteriori o que fizeste. Como se a
culpa fosse minha.
Paulo
abriu a boca para falar. Ana levantou a mão e ia continuar mas hesitou e
concluiu:
–
Não precisas de me dizer mais nada, Paulo. Aliás, não precisamos de dizer mais
nada um ao outro.
–
Eu não queria que as coisas ficassem assim…
– Vai-te
foder! – Ana empurrou a cadeira para trás, agarrou o guardanapo que tinha no
colo, passou-o pelos lábios, pô-lo ao lado do prato, levantou-se e foi-se
embora.