Antes que o preclaro António Dias, venha
para aqui dizer que já pôs um penedo de Monsanto em cima da guerra, eu começo por avisar que este canhão não é um canhão. Era um homem, que tinha uma alcunha bélica – Canhão. Um militar africano, de etnia fula. Lembro-me dele, como se estivesse aqui à minha frente. Alto, quase dois metros de estatura, olhos grandes e inquietos, uma barba branca e rala e uns pés onde moravam umas botas número 48. Usava calções de Janeiro a Dezembro e nunca o vi que não fosse a rir. Um riso largo, que lhe ocupava a cara toda e uma forma muito peculiar de ver a vida. Tratava-a com desdém e dizia que era na morte que começava tudo. Talvez uma crença religiosa, que o levava a afirmar que nunca virava o peito às balas. Se lhe acertassem, era o Destino.
Como todos os homens, o Canhão tinha qualidades e defeitos. Gostava de gastronomia, por exemplo. Uma qualidade. Mas era louco por carne de macaco. Um defeito. Um clamoroso defeito. Defeito, porque não se coibia de, nas colunas militares, atirar rajadas de metralhadora para as árvores, na expectativa de ver derramados pelo chão, meia dúzia de infelizes. Era como andar a varejar azeitona num chão de oliveiras, no Alentejo. Um dia, subi ao rodado de um camião, para ficar de olhos nos olhos com ele e gritei-lhe furioso: “… ó Canhão, queres matar-nos a todos?!… Não vês que estás a denunciar a nossa posição ao inimigo…?!”. O Canhão descansou então os braços sobre o cano da arma, compôs o boné militar, deu um suspiro fundo e disse-me com os olhos no horizonte: “… mas ó furriel, aquele macaco era tão tenrinho…”. Nada a fazer…
Uma noite, ligámos a máquina do Melgueira e projetámos um filme contra a parede branca da caserna. O filme era o delírio para quem já andava meio louco. O documentário, já um tanto queimado e deteriorado de tantas vezes ser visto, mais não era que uma loira escultural, como Nosso Senhor a pôs no Mundo, a lavar um carro com uma mangueira. Lavava bem, admito. E estávamos nós a ver a esguichadela de mangueira pela centésima vez, quando entrou no abrigo o Canhão. Ao ver a preciosidade, que o mesmo é dizer, a bela “ragazza”, encostou-se a uma parede assombrado, de olhos arregalados e respiração ofegante. E riu. Riu muito e bateu palmas. A plateia acompanhava-o, metendo os dedos na boca e soltando assobios estridentes. E quando o filme acabou, depois de repetido mais dez vezes, a pedido do culto Conclave, o Canhão partiu, entusiasmado.
No dia seguinte, ao passar por ele na parada, perguntei-lhe quais tinham sido as suas impressões, sobre aquela fantástica noite de «cinema». Então, olhou para mim, voltou a rir até se engasgar e disse-me em apoteose: “ó furriel, estive toda a noite sem dormir, com a cabeça cheia de pensamentos abandalhados”. Uma qualidade…
Quito Pereira
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