22 setembro 2013

Escorregar no tapete


Aos primeiros raios do sol de verão acordámos com os corpos enlaçados um no outro e os nossos vizinhos dos andares lateral e inferior puderam ouvir os clamores da nossa massagem matinal.

E com o dever cumprido e a minha preguicite virada para o outro lado, ele escorregou da cama, chinelos e cuecas apanhados do chão e pé ante pé, lá foi escarrapachar os seus slipes pretos na cadeira almofadada ao seu cu e de dedo em riste, zás, ligou o computador acomodado à Microsoft.

Cada dia ele dedicava mais tempo ao computador, ora com olhos embevecidos, ora com esgares interrogativos como se estivesse a partilhar uma discussão com aquele amontoado suave de metais e circuitos integrados. Na ocasião pensei que seria mais preocupante caso se dedicasse a esticar o seu corpinho no sofá para as sessões contínuas da SporTv ensopadas em cerveja branca ou uísque com gelo.

Mas as refeições passaram a ser mudas e sem comunicação visual e até o contacto da pele se tornou um passeio de bicicleta fixa para cumprir os horários de exercício, inodoros e insonorizados. E assim me vi impelida a aprofundar a raiz da questão: comprei um portátil e mergulhei no mundo digital. O fascínio dos pixels, das letras a brilhar como que impressas, o poder de criar imagens sem saber um boi de desenho, a facilidade da comunicação à distância nas velhinhas BBS e depois nos chat's e MSN, tornou-o meu companheiro inseparável.

Sabe Senhor Doutor, ter um pc é ter um orgão excitante e eréctil, sempre ao alcance da mão e afinal, com o tempo, o amor acaba por ser ficção.

«As pedras falam e amam» - por Rui Felício


Por trás dela, como cenário de fundo de palco, uma enorme e grossa porta de castanho enegrecido pelo tempo, toda ouriçada de cravos de ferro pontiagudos como espinhos em lombo de dinossauro.A seus pés, sentados nos degraus da escadaria da Sé Velha, quatro homens de ar sisudo e compenetrado, envoltos em capas negras, extraiam das guitarras sons melancólicos, belos, arrepiantes, que as paredes das casas em frente devolviam chorosos, carregados de saudade.
Era a primeira vez que, na noite escura e naquele mesmo local por onde passaram os maiores nomes da canção académica, uma mulher cantava o fado de Coimbra, contra a opinião dos puristas da tradição, mas com o aplauso dos que entendem que a canção coimbrã deve evoluir e adaptar-se à sociedade estudantil actual, sem peias ou condicionalismos serôdios e ultrapassados pelo tempo.
O timbre cristalino da sua voz, a forma peculiar da interpretação, a beleza da sua elegante silhueta, enriqueceram a melodia, sem olvidar as vozes de antanho, antes melhorando-a.
Finda a serenata, os ecos das guitarras foram esmorecendo sob o pesado silêncio da noite e ela, no seu vestido negro a esvoaçar ao vento, despedindo-se dos artistas que a acompanharam, optou por se afastar sozinha em direcção à Baixa.
Descalçou-se e de pés nus e os sapatos de salto pendurados na mão, ainda com o peito a arfar de prazer pela romântica noite que acabara de viver, foi descendo pensativa a íngreme calçada do Quebra Costas.
Pisando as mesmas pedras frias por onde caminharam Menano, Goes, Bernardino, Zeca Afonso e tantos outros.
Estacou!
Pareceu-lhe ouvir um sussurro vindo das profundezas da calçada. Tensa, apurou os sentidos e, incrédula, ouviu este diálogo entre o calhau rolado, estranhamente mais tépido que os outros, e que o seu pé nu inexplicavelmente acariciava e o degrau de mármore da casa ao lado.
- Sou de rudes origens, nasci na Serra da Estrela e rolei na correnteza do Mondego até chegar a Coimbra onde me poli até ser colocado nesta calçada.
Por aqui passaram homens e mulheres insignes, ricos e pobres, sérios e desonestos, polícias e estudantes. Mas a nenhum deles jamais me afeiçoei.
Agora, porém, estou perdidamente apaixonado.
E tu meu caro mármore, como aqui vieste parar?
- Vim de Estremoz para embelezar os salões da Universidade, do Episcopado, dos Solares das familias burguesas.
Das sobras, fizeram-me degrau desta casa. Orgulho-me de conviver com a aristocracia, ao contrário de ti, pobre calhau rolado sem pergaminhos.
Mas nós as pedras não temos sentimentos. Não compreendo por isso, como dizes estar apaixonado! E por quem o estarias?”, perguntou-lhe trocista o mármore na sua frieza gélida.
O calhau rolado, ronronou, de coração palpitante, envolto num doce prazer e respondeu-lhe:
- Jamais, até hoje, tive a sensação da aveludada pele de um pé nu carinhoso e sensual a afagar-me, como agora mesmo o sinto.
O pé de uma bela mulher romântica, dona de uma voz incomparável, que ainda há pouco fez resvalar por estas pedras como água limpida e fresca, que só um frio e pedante mármore como tu não consegue sentir.
Sim, estou apaixonado por esta jovem e esbelta mulher!

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Blog Escrito e Lido

Foto - Carlos Martins (2005) - olhares.com

Tim Noble e Sue Webster - «Black Narcissus», 2006


Via Danish Principle