Naquele tempo, o Dr. Alberto Noronha era reconhecido como o mais elegante peralvilho da cidade de Coimbra.
Pelo menos uma vez por mês deslocava-se a Lisboa, à alfaiataria Rosa & Teixeira, da Av. da Liberdade, para mandar fazer os seus fatos.
Como advogado, de reconhecido renome, havia quem dissesse à boca pequena que não era de grande competência. Porém, a sua fama granjeara-lhe clientes de grande poder económico.
Ganhou muito dinheiro.
Já como janota, toda a gente via o homem mais elegante de Coimbra.
Nunca casara. Era o eterno conquistador celibatário, com o sonho de vir a ser amante de uma actriz, cantora ou bailarina de 1ª linha.
Estas ligações duravam enquanto cintilasse o brilho da estrela. Logo que ofuscasse ele encontrava um pretexto para a finalizar e partir para outra.
A sua tara implicava que essa relação, conquanto fugaz e efémera, fosse pública e desse brado na cidade.
Quando alguém o questionava sobre a sua idade, invariavelmente a resposta era:
- Anda à volta dos quarenta. Durante mais de uma dezena de anos esta resposta repetia-se sempre.
Os antigos colegas da Fac.Direito, todavia, afirmavam que teria mais de cinquenta.
As mulheres, por seu turno, diziam que a sua idade rondaria não mais de 40.
Aconteceu naquele ano, que o TAGV programou três espectáculos de Ballet com a Companhia do Ballet Gulbenkian.
A estrela da Companhia era uma belíssima bailarina portuguesa de origem escandinava.
Conhecida a noticia da vinda ao TAGV da Companhia Gulbenkian, o Dr. Alberto Noronha, começou de imediato a tratar do necessário para preparar o camarim daquela bailarina de modo a proporcionar-lhe o conforto adequado ao seu estatuto.
Na véspera da estreia, ia realizar-se o ensaio geral. Entrou no TAGV de braço dado com a estrela da Companhia a quem se dera já a conhecer no Hotel onde estava instalada.
A bailarina ficou espantada com o conforto do camarim, com espelhos, luzes e um sofá. Agradeceu ao Dr. Noronha o bom gosto na decoração. Mandou-lhe um beijinho sonoro e repenicado com um gesto da mão sobre a qual soprou na sua direcção.
- Dá licença?
Era o Director de Cena que abria a porta do camarim, acompanhado por uma mulher de ar doentio, idosa, com olheiras, pobremente trajada.
- É a costureira que o Sr. Dr. pediu.
- Muito bem, Obrigado.
A bailarina, mirou-a com ar de comiseração e atreveu-se a perguntar-lhe.
- Está doente?
- Já estou boa. Tive uma doença grave. Tive alta do hospital há três dias.
- Bem, vamos a isto! sentenciou a bailarina, sentando se em frente ao espelho e começando a maquilhar-se.
- Sente-se aqui!, e intimou a costureira a sentar-se na cadeira a seu lado.
Fixando o olhar, através do espelho, no Dr. Noronha, refastelado no sofá, a estrela do Ballet comentou:
- Já ouvi a seu respeito que você adora artistas.
- É verdade, respondeu ele.
- E há quanto tempo dura essa doidice?
O Dr. Noronha estalou os dedos.
- . Isso já passou há muito. Bem vê, estou velho agora. Orço pelos quarenta…
- E qual foi a sua última paixão. Como se chamava?
- Foi há muito. Está esquecida. Não sei nada dela. Nem sei se terá morrido já. Chamava-se Florbela. Era actriz cabeça de cartaz em teatros de Lisboa.
Acrescentou:
- Há mulheres que são como os passarinhos. Os que não foram mortos a tiro ou engaiolados, nunca ninguém lhes encontra os cadáveres.
. Meu caro Doutor, agora tem de sair, porque me vou despir.
Logo que ele saiu, a costureira ajudou-a a despir.se.
Mirou a bela bailarina, agora nua e atreveu-se a comentar:
- A senhora tem um corpo fantástico.
Ao mesmo tempo que ela lhe ajustava o vestido de seda, prendendo com alfinetes algumas pregas, escutou a bailarina que lhe disse com ar admirado e algo desdenhoso:
- Acha?
- Eu também já fui bem feita de corpo, mas.. não tive juízo: fiei-me demais nos homens.
A costureira não resistiu a dar-lhe um conselho:
- Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses engatatões que fazem das mulheres um objecto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.
A bailarina, com má cara, disparou:
- Mas afinal quem é você para me estar a fazer esse tipo de observações?
- Desculpe minha Senhora. Eu, eu sou a Florbela…
Rui Felício
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