Corpo num horizonte de água, corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos, corpo defendido pelo
fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina, corpo amorosamente
humedecido pelo sol dócil da língua.
Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim,
corpo onde entro em casa, corpo onde me deito
para sugar o silêncio, ouvir a
música das espigas, respirar
a doçura escuríssima das silvas.
Corpo de mil bocas,
e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito irrompa das
entranhas e
suba às torres,
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.
Corpo para beber até ao fim – meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação, meu vento favorável,
minha vária e sempre incerta navegação.
Eugénio de Andrade
Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005). Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com «essa debilidade do coração que é a amizade».