Ao contrário da postura de negação à qual a Igreja Católica Portuguesa se remeteu, o quadro de abusos sexuais é endémico e vem de uma normalidade comportamental cimentada ao longo dos tempos.
Vejam no Público a minha análise que busca a as raízes antigas e consolidadas do fenómeno atual. Para quem não conseguir ler, segue o texto:
O nosso olhar tende sempre a focar-se no momento presente. É nele que temos as nossas mais diretas e imediatas questões. Contudo, quase tudo o que fazemos se relaciona com o passado, com as tradições, as heranças, a cultura. Não é que devamos relativizar, no sentido de desvalorizar, os atos com base nas justificações do passado, mas devemos tentar compreender como, por vezes, os atos do presente são legitimados e tornados, dentro das instituições, normais através de atitudes que se arrastam ao longo de séculos.
O espanto que hoje vemos nas palavras de muitos políticos e clérigos é apenas o resultado, ou de uma franca e clara ignorância, ou a máscara que importa colocar para não ver recair sobre si o mau olhar da opinião pública. Ainda ecoam na nossa memória as declarações de desvalorização de Manuel Linda, por exemplo, em 2019 (declarações à TSF a 20 de abril).
Contrariamente à postura de negação em que a Igreja Católica Portuguesa esteve, como se em Portugal nada se tivesse passado, ao contrário do que sucedera em tantos outros países, o quadro é verdadeiramente endémico e vem de uma normalidade comportamental cimentada ao longo de séculos.
Os indícios de práticas reiteradas, ao longo de séculos e séculos, com total conivência das hierarquias, são conhecidos e têm sido alvo de investigação. Não se pode dizer que não se sabia e, muito menos, partir do princípio de que esse passado em nada desaguou no presente. Chegou ao momento atual através da manutenção do essencial do que eram as práticas há quase 500 anos, pelo menos, desde o Concílio de Trento (1545-1563), quando se torna, de facto, obrigatório o celibato.
Algum trabalho de investigação tem sido levado a cabo sobre a sexualidade na Época Moderna. Poucos são os trabalhos que, dentro desse quadro cronológico, se debruçaram sobre os sacerdotes católicos, mas há alguns estudos que nos abrem portas para uma leitura na Longa Duração que nos explica parte do fenómeno que hoje nos confronta. Um dos aspectos mais inquietantes é a “solicitação”.
Isabel Drumond Braga e Paulo Drumond Braga, realizaram vários estudos, desde finais dos anos 90, sobre os chamados crimes de “solicitação”[1]. Aos trabalhos destes dois historiadores, juntam-se as pesquisas de Jaime Ricardo Gouveia[2] e, mais recentemente o de Bruno Abreu Costa[3]. Em todos estes trabalhos encontramos a prática desse tipo de crime, a sua violência e o seu encobrimento e desvalorização, marcas que perduraram até hoje.
A “solicitação” é a tentativa de obter “favores” sexuais no momento da confissão. O ato poderia não ter lugar nesse lugar e momento, mas o contexto, quer de isolamento, quer de fragilidade espiritual, era o propício para conseguir um compromisso que se concretizaria depois. Podemos ter hoje acesso a parte minúscula destes crimes através das escassas denúncias que evoluíram para processo na Inquisição.
Sigamos o estudo de Bruno Abreu Costa, na descrição de uma situação exemplar na metodologia usada, a do Padre Bento de Lira, pároco de S. João Batista da Fajã da Ovelha, Calheta, Madeira, de 1620 (manteve-se a ortografia da época, tal como o investigador a transcreveu do manuscrito): “Pedro da Silva Sampaio, o inquisidor encarregue do processo, questionou Bento de Lira, «a que pessoa do sexo feminino avera sete anos estando de giolhos [joelhos] para se confessar sacramentalmente, com elle a seus pes, solicitou disendo lhe se quiria ter com elle amisade dando lhe a entender que hera para actos deshonestos de fornicaçam […] depois de a solicitar ella se confessou e elle absolveo sacramentalmente»”.
Não que não fosse anterior, mas creio que os crimes de natureza sexual tenham aumentado com o Concílio de Trento e com a generalização do celibato e da castidade. Nesse quadro cronológico, a falta de legislação aplicável e o significativo número de casos, levou a que a Inquisição portuguesa procurasse obter de Roma o direito de processar e condenar os Padres “solicitadores”. A autorização surge em 1599, jurisdição aumentada em 1608. Em 1612, mostrando a existência de uma outra prática, foi alargado o âmbito deste delito à “solicitação” junto de homens.
No que respeita à idade das vítimas, a dominante é claramente a do assédio junto de mulheres jovens frágeis, viúvas ou mães solteiras, mas também jovens adolescentes numa percentagem muito significativa. Não o são em exclusivo, mas essa normalidade leva a que o Padre Lira tenha apontado em sua defesa que as suas vítimas tinham mais de 12 anos.
O quadro de desenvolvimento dos próprios processos também nos diz muito sobre o presente. Como Bruno Costa nos diz, “as testemunhas acusatórias eram sempre interrogadas sobre a «fama» dos réus. Por fama entenda-se a imagem pública do clérigo, a sua reputação e, em algumas situações, o boato que corria na paróquia sobre a sua vida pública e privada.” O central era a “fama”, não as vítimas. Aliás, a palavra vítima ou qualquer sinónimo não são usadas nestes processos.
Mas mais, era norma nestes processos inquisitoriais a obrigatoriedade do sigilo, desde os interrogatórios até à própria sentença: “leitura da sentença e o termo de abjuração foram feitos à porta fechada”, diz-nos o investigador. Acrescenta: “alia-se a este facto, a obrigatoriedade de manter sigilo da própria pena, que poderia transmitir a imagem de que o seu pároco tinha sido ilibado de todas as denúncias, permitindo resguardar a sua honra e reputação”.
Por fim, as penas eram de grande brandura, para além de nada haver de compensatório para com as vítimas. Normalmente era a abjuração leve, com um juramento de não tornar a cometer o mesmo crime, mostrando arrependimento pelo acontecido. De resto, as penitências eram de ordem espiritual (confessar-se, comungar, jejuar durante certo tempo). Por vezes, era também dito que deveriam “evitar, quando possível, confessar mulheres, principalmente solteiras”.
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«A confissão da prostituta Maria Vai com Deus» Milena Miguel (atelier S. Miguel) Barro vermelho e tecido Caldas da Rainha, 2016 Coleção de arte erótica «a funda São» |
Jaime Ricardo Gouveia traz-nos o caso do Padre Pedro de Aguiar, que confessou, em 1691, ter solicitado duas mulheres, se bem, que por tentação do demónio: “[…] tentado do diabo considerando no pecado de sodomia, com efeito penetrou pello vazo traaeiro com o seu membro viril a dita Maria da Silva […]”. Neste caso, o solicitante apenas foi admoestado para não voltar a cometer o mesmo.
Poucos eram os casos que implicavam penas mais duras. Para o Padre Bento de Lira, “decidiu-se […] que o réu deveria repudiar, levemente, os atos passados na presença de diversos inquisidores […]. Além desta pena, o antigo pároco seria privado da cura de almas, não podendo administrar os sacramentos; ficaria suspenso das suas ordens durante seis meses, impossibilitado de dar missa; e estaria interdito de ir à paróquia da Fajã da Ovelha, «para que não renovecom sua presença nos animos dos fieis a memoria do scandalo e mao exemplo, que lhes dava». Com penas definidas no Regimento de 1640, a Inquisição estipulava para estes crimes este tipo de penas, exatamente o que encontramos neste caso. Não consta que, nem durante o processo, nem como pena, algum dos Padres que localizei na bibliografia tenha sido preso. Mesmo a deslocalização para outro bispado não acontecia sempre, e o degredo, também previsto no Regimento, era apenas um referencial teórico.
Num ambiente de grande proteção, os arquivos da Inquisição guardam 229 processos referentes a “solicitação”. Já os Cadernos dos Solicitantes, o registo dos acusados deste crime, entre 1611 e 1700, registam 920 clérigos acusados, dos quais apenas 8,9% evoluíram para processos na Inquisição, pelo levantamento de Jaime Ricardo Gouveia. Mantendo a dominante que se encontra ainda hoje, a maioria das vítimas que encontramos na Inquisição apenas denunciaram os abusos vários anos depois, por vezes, mais de uma dezena de anos após os factos. O medo de represálias, o medo do olhar social e da reprovação, o medo da “perda da honra”, o medo de terem sido elas o motor do “pecado”, criava um clima em que a vítima se silenciava.
Apenas com preocupação na “fama”, os Padres abusadores eram claramente protegidos. As vítimas, muitas delas, crianças ou adolescentes, eram nos interrogatórios alvo de fortes pressões para aferir se teriam algum motivo contra o Padre que denunciavam e se a sua declaração era mesmo verdadeira. A autoridade do sacerdote era sempre um valor contra quem os acusasse – veja-se o magnífico estudo “Costelas de Adão: a desacreditação dos depoimentos femininos na Inquisição portuguesa”, de Jaime Ricardo Gouveia.
Século após século, possivelmente acentuadas com o fechamento moral pós Trento, as práticas mantiveram-se, quer as de assédio e abuso sexual, quer as de encobrimento. Virado que está o século XX, numa sociedade que olha para as vítimas com base num pensamento humanista e nos Direitos Humanos, importa compreender que não estamos perante um fenómeno apenas da atualidade. Não, estamos num pântano de costumes que, de forma muito complexa, define uma moral e, tantas vezes, pratica outra, salvaguardada essa incongruência por detrás da cortina protetora do peso institucional e do prestígio e superioridade religiosa de quem praticava o crime. Jaime Ricardo Gouveia dá-nos o caso de uma mulher alentejana que afirmava: “[…] vindo buscar a Deos à confissão, achara o Diabo […]”.
Os “Crimes dos Padres Amaros”, brincando com o título do clássico de Eça de Queiroz, eram algo muito conhecido por toda a sociedade, especialmente pelo clero. Seja na mais normal fuga à castidade, que é imposta e que luta contra a natureza da atração sexual, dimensão constitutiva da nossa espécie e de cada indivíduo, seja no assédio e na violação, especialmente de menores, há que compreender que o fenómeno hoje em debate, não é de hoje, nem se resolve com paliativos. A Igreja Católica, se quer estar no mundo e a ele (co)responder, tem de abrir, sem medos, o debate sobre a sexualidade dos seus clérigos, um anacronismo sem qualquer suporte teológico, nem enraizado numa longa tradição que venha dos tempos primeiros do cristianismo.
[1] “Um Solicitante na Inquisição de Coimbra no século XVII: o Padre António Dias”, Vértice, n.º 66, Lisboa, 1995, pp. 97-100, e “Confessar e Solicitar no Brasil Colonial”, Inquisição Portuguesa. Tempo, Razão e Circunstância, Lisboa, São Paulo, Prefácio, 2007, pp. 331-342.
[2] “A repressão do delito de solicitação pelo Santo Ofício na diocese do Porto (1551-1700)”, in Vítor Oliverira Jorge e José M. Costa Macedo (orgs.), Crenças, Religiões e Poder, Porto, Afrontamento, 2008, pp. 219-233; O Sagrado e o Profano em choque no confessionário. O delito de solicitação no Tribunal da Inquisição, Coimbra, 2011; “A solicitação clerical em Loulé (séc. XVI a XVIII)”, in Atas do IV Encontro de História de Loulé, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2021, pp. 159-176; “A jurisdição privativa da Inquisição portuguesa sobre o delito de solicitação: De facto ou de iure?”, INVESTIGACIONES HISTÓRICAS. ÉPOCA MODERNA Y CONTEMPORÁNEA, 42 (2022): 507-548.
[3] “Pecados do Corpo, Delitos da Alma: o Crime de Solicitação na Madeira (Século XVII)” Anuário CEHA, 7, 2015, pp. 129-152.