Só há duas ocasiões em que falo com ela. Quando estou com ela e quando estou sozinho. Na verdade, como quando estamos juntos deixo-a falar a maior parte do tempo e limito-me a ouvi-la, é mais quando estou só que lhe dirijo a palavra. É por isso que termino sempre as nossas conversas a concluir que ando louco. Falo sozinho e ela não me ouve. Claro.
Quando penso que estou louco, levanto o olhar e lanço-o para longe como se fosse uma rede. Quero apanhar pessoas. Se estiver na rua, pesco transeuntes; se estiver num bar, pesco bêbados e grupos de amigos; se estiver no estádio, pesco adeptos. Se estiver em casa, não pesco nada que não seja a minha solidão. E então o meu olhar cai na garrafa de uísque que um amigo me ofereceu num jantar. Bebo e continuo a conversar com ela.
Apanhar pessoas com o meu olhar faz-me sentir melhor. Pelo menos, menos louco (passe a redundância do menos). A minha loucura dilui-se na diferença que há entre cada um de nós, na individualidade de cada olhar e forma de andar, e torna-me apenas mais um. É óptimo. Sinto-me um falhado na mesma, mas democratiza o falhanço que é a vida.
A Sandra é a culpada da minha solidão. Não por me ter deixado, mas por ter gostado de mim antes disso e por me ter permitido Amá-la. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida a água e o sexo, o Amor só nos faz falta quando já o tivemos antes. É por isso que o Amor é a pior das boas notícias que podemos ter. Quando nos bate à porta nunca vem por bem.
Passei uma grande parte do tempo que já passou por mim a ver filmes pornográficos. Não voluntariamente, mas por ser essa a minha profissão. Era projeccionista num cinema improvisado numa garagem da cidade que vivia da solidão sexual alheia. Várias vezes me perguntei se teria clientes num mundo perfeito, onde toda a gente tivesse alguém para Amar, mas nunca me consegui responder.
Os meus clientes eram quase sempre pessoas sós, mas às vezes apareciam grupos de jovens estudantes que vinham mais numa lógica de diversão do que de solidão. Passavam a sessão toda a rir e a contar piadas, estragando a intimidade que qualquer solitário precisa de ter com uma película pornográfica. As únicas mulheres que apareciam vinham incluídas nesse tipo de grupos. De resto, novos ou velhos, eram sempre homens.
Foi por isso que reparei facilmente na Sandra. Era mulher e estava sozinha. Sentou-se na última fila, bem perto de toda a maquinaria que eu montara durante vários anos para poder exercer a minha actividade com regularidade, pensei eu que para se sentir protegida dos olhares dos homens solitários que iam fazendo sons orgásmicos durante o filme. Aos cinquenta minutos já todos se tinham ido embora, depois de terem colocado um guardanapo sujo no cesto de papéis na entrada. Menos ela. Virou-se para trás e disse-me que, se eu quisesse, podia parar o filme e acender a luz.
Era jornalista e queria fazer uma reportagem sobre mim, mas acima de tudo era bonita. Aceitei. Com medo, mas aceitei.
Em duas ou três perguntas, a Sandra já sabia mais de mim e da minha vida do que qualquer um dos meus amigos habituais. Na verdade já sabia tudo. Que eu era um homem de meia idade deprimido, solitário e sem qualquer tipo de ambição que não fosse viver em paz e sossego. Fizemos sexo logo ali, nas cadeiras de veludo gasto do meu cinema improvisado, debaixo da luz dum filme pornográfico que eu me tinha esquecido de parar. Viemo-nos ao mesmo tempo que os actores e depois começou a ficha técnica.
Ela disse "que bom!".
A segunda vez foi uma hora e duas cervejas depois, no meu apartamento minúsculo num subúrbio da cidade. Não disse "que bom!", mas disse que até parecia que eu nunca tinha tido sexo com uma mulher antes dela. Sorri-lhe. Ainda bem que ela nem desconfiou que eu ainda era virgem aos quarenta anos.
A maior parte das mulheres não sabe, ou finge não saber, que os homens são o sexo frágil. Eu acho que é mais fingimento, porque assim aproveitam-se do facto de termos que parecer fortes. Fazemos tudo por isso, desde transportar sacos de compras pesados enquanto encolhemos a barriga até escondermos as lágrimas quando elas nos deixam. E eu, homem que frágil me confesso, chorei assim que a senti sair para sempre.
Quando uma mulher se despede de um homem pela última vez torna-se o pretérito mais que perfeito, um passado anterior ao nosso próprio passado. Foi assim quando ela se despediu de mim, porque o nosso Amor já tinha morrido, mas o meu Amor por ela não.
Que mau!
Mais que perfeita, lembro-me dela com o vento. Os cabelos negros e longos a dançarem no meu peito nu e os seios firmes a voarem num céu à distância dos meus braços. Depois mandava-me estar quieto e algemava-me as mãos com um beijo para se poder concentrar no cata-vento vertical. Às vezes sorria, outras vezes não. Às vezes vinha-se, outras vezes não.
Depois foi-se embora. Para sempre, disse ela abanando um saco de plástico com o logótipo de um supermercado que ia enchendo com as coisas dela. Não muitas. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Passámos os dois cerca de meia hora à procura do resto das coisas dela, mas por muito que nos custasse acreditar não havia resto. Só isso, em dois duma relação intensa. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. E eu a querer que aquela meia hora durasse toda a minha vida.
Não durou. Deu-me dois beijos na face e bateu a porta com determinação.
As mulheres não deviam beijar na face um homem com quem já fizeram Amor. É o que eu lhe estou a dizer agora, mesmo que ela não me ouça. Beijos assim são como balas no coração. Um homem vai sangrando devagar até morrer de Amor, se tiver azar, ou de uma bebedeira fatal se tiver sorte. Os beijos na face duma mulher que já nos Amou são o crime capital.
Peço mais um uísque. Lá fora, alguém verteu no céu uma imensa aguarela negra. Lanço a minha rede e pesco um casal apaixonado numa das mesas do canto do bar. Reparo nas mãos dadas, nos copos vazios e nas vidas cheias. Falam um com ou outro apenas com os olhos e acreditam que vai ser sempre assim. Ao meu lado, no balcão de madeira marcado pelo tempo, um homem fala com uma mulher que também não está presente. É a Sandra dele, provavelmente, e canta-lhe uma música desafinada com uma letra que não entendo. Para além da mulher que agora me traz a bebida, não há mais ninguém aqui. Dou um gole suave e sorrio. Sinto-me mais só do que se estivesse apenas sozinho.
2 | Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou
Estou há mais de meia hora na casa de banho, sentada na sanita com o portátil nas mãos a jogar um jogo estúpido do Facebook. Já plantei vários tipos de legumes e alimentei animais duma quinta virtual da qual me tornei escrava e agora penso no tempo que gastei a fazê-lo. O que é que cabe em meia hora?
Foi o tempo, por exemplo, que gastei à procura das minhas coisas na casa dele. Ele, com aquela sua presença absurda, a espreitar para baixo da cama e para os livros do armário da sala. Eu, desesperada, a abrir todas as gavetas e compartimentos da casa. Aquela meia hora demorou muito mais tempo do que esta em que não fiz mais nada do que alimentar vaquinhas, ovelhas e cavalos. Tudo para trazer um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Mais valia ter deixado lá tudo, só para não ter que o ver a chorar sem chorar.
Os homens são estranhos. Só se sentem sós quando ficam fisicamente sozinhos. As mulheres sentem-se sós quando simplesmente não são ouvidas, mesmo que estejam acompanhadas todos os dias. É uma das coisas que eles não entendem. Disse-lhe tantas vezes para parar de organizar a sua colecção de filmes pornográficos por ordem alfabética e ano de produção e para me ouvir. Mas ele não ligava. Limitava-se a sorrir e a acreditar que eu lhe achava piada.
O Mário era o culpado da minha solidão. Não por não me ouvir, mas sim por ter começado por fazê-lo. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida, a água e o ar, o Amor só nos faz falta quando alguém que nos dá atenção deixa de o fazer.
Depois de um dia de silêncio era a rotina do sexo. Comecei a prender-lhe as mãos à cama no dia em que deixei de gostar do seu toque no meu corpo. Ainda bem que ele pensava que era um jogo erótico. Meu Deus! Tanto filme pornográfico e tão pouca sabedoria. Às vezes fingia que me vinha, outras vezes não.
Cheguei a pensar que estava louca por me deixar andar naquele Amor, como um peixe quase morto que se deixa ir na corrente do rio. Saía à rua só para, por um momento que fosse, sentir que o mundo era maior do que a minha vida miserável. Procurava qualquer sinal positivo no olhar dos transeuntes e às vezes encontrava um sorriso anónimo que me salvava o dia. Sabia-me bem, mas depois voltava ao mesmo.
Depois aconteceu aquele sorriso diferente de todos os outros, de um homem que parou e me convidou para um café. Primeiro escondi a cara por vergonha, mas depois aceitei por desespero. Acabei a fazer Amor nos bancos de trás do carro dele, num parque de estacionamento de um supermercado onde acabei por comprar apenas um saco de plástico para poder trazer tudo o que era meu. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô.
Dei-lhe dois beijos e ele nem se mexeu. Tinha a pele fria e o olhar mais ausente do mundo. Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou. É como se ela não valesse nada, afinal. Como se a sua importância se resumisse à condição de companheira sexual.
Que mau!
Fecho o computador e levanto-me. Aposto que tenho a marca da sanita no rabo. Ele dizia-me sempre isso quando eu passava muito tempo na casa de banho. Lá fora, o fim da tarde adquiriu vários tons de um cinzento triste. Se bem o conheço, perdeu-se por aí num bar qualquer e está a tentar embebedar-se duma saudade que não tem. É a terapia dele, sentir-se triste e só. Por falar nisso, sinto-me menos só do que quando estava com ele.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»