27 novembro 2015

«Não!» - bagaço amarelo

Para eu gostar de alguém, não basta que esse alguém goste de mim, embora essa seja uma condição sine qua non. A minha exigência é que esse alguém goste de pessoas em geral. Eu, para além de mim, ou até antes de mim, sou uma pessoa.
Lembro-me duma tarde qualquer em Lisboa, com muito calor e a cidade tão deserta quanto eu. O meu divórcio tinha sido pouco tempo antes. Talvez por isso os navios que cruzavam o Tejo me parecessem todos à deriva, como se tivessem ido ali parar apenas porque sim, sem a pressa de quem tem uma origem e um destino. Como eu.
E depois ela apareceu e perguntou-me se eu era eu.

- Sim!

Demos dois beijos e eu perguntei-me, em silêncio, se naquele dia ainda nos íamos beijar de outra forma. Não sei se ela se perguntou o mesmo. Nunca sei essas coisas, mas tendo em conta o que é um blind date é sempre legítimo pensar que sim. O meu pensamento dedutivo é que falha muito. Ela era bonita. Muito bonita.
Sentámo-nos numa esplanada qualquer e tentámos arrumar a vida, eu a minha e ela a dela, para a explicarmos como se nos estivéssemos a vender um ao outro. É sempre assim, depois com alguns sorrisos à mistura e duas ou três piadas fracas que mesmo assim fazem rir. Bebemos três cervejas cada um e depois beijámo-nos. Foi mais rápido do que eu esperava. Andar à deriva dá nisto, acidentes ocasionais num imenso mar de solidão. Ela quis saber se comigo era sempre assim.

- Não!

Depois foi o empregado do restaurante. Falador, tratou-nos como se fossemos casados há muitos anos e elogiou-nos por isso. Entrámos no jogo dele, sempre com sorrisos matreiros escondidos. Mal sabia ele que nos tínhamos conhecido nessa mesma tarde e que os nossos corpos ainda não se tinham tocado numa cama. Ofereceu-nos uma ginja no fim e perguntou-nos se tínhamos filhos.

- Sim! - disse ela.
- Não! - disse eu ao mesmo tempo.

Fomos descobertos.
Deixámos o dinheiro em cima da mesa, junto a uma conta feita na toalha de papel cheia de manchas de vinho, e saímos. Lá fora as pessoas passavam por nós, contornando o nosso primeiro abraço prolongado. Lembro-me de perceber que nunca sabemos que abraço estamos a ver, se o primeiro duma vida, se o da despedida, se um casual para impedir lágrimas. Os abraços são tão importantes...
E ela quis saber se eu queria atalhar a noite e ir já para casa dela.

- Sim!

E na noite um corpo outra vez. Um cheiro a mulher e aqueles toques que alternam entre o bruto e o suave, como o champanhe. Lisboa do lado de fora da casa dela e eu infiltrado ali, como um amante clandestino. Chamei-lhe Amor e ela deixou. Adormecemos.
Não há melhor acordar do que aquele que é simultâneo e se ri de tudo. Tornámos a arrumar a vida, não para nos vendermos mas sim para nos comprarmos.

- No próximo fim de semana, se puder ser, vais tu ter comigo... - disse eu sem calcular a abrangência do que dizia.
- Para quê?
- Para conheceres a minha vida. Os meus bares, a minha casa, os meus amigos...
- Não quero conhecer nada do teu passado. Só me interessas a partir daqui. Pode ser?

No tecto do quarto dela estava um animal qualquer com antenas e muitas patas. Talvez fosse um receptor de som escondido, um produto da tecnologia para que Lisboa espiasse a nossa conversa. Imaginei uma cidade inteira à espera da minha resposta.

- Não!


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»