27 maio 2018
«está a chover» - bagaço amarelo
O último carro que passou era branco. Não sei a marca. Sei que antes de atravessar a estrada que dá para o maior supermercado da cidade, olhei para o lado direito num movimento que me é, de certa forma, pensado. Ainda não me habituei totalmente ao sentido do tráfego na Inglaterra e o meu primeiro impulso é sempre olhar para o lado esquerdo. O meu segundo movimento pensado seria, caso pudesse, atravessar a passadeira mesmo com o vermelho aceso. Chovia a cântaros.
O carro branco que passou era conduzido por uma mulher. Os nossos olhares cruzaram-se por uma fracção de segundo. Depois o motor tossiu e ela acelerou até desaparecer na curva seguinte.
No fim nada. Só a memória fresca dos olhos negros que tinham acabado de me tocar como se fossem vento frio. A cidade ficou deserta, mas mesmo assim os semáforos continuavam a alternar as luzes vermelhas e verdes num gesto mecânico, repetitivo e ausente. Talvez, durante uma parte da minha vida, eu tenha vivido assim, da mesma forma, repetindo gestos diariamente só porque sim. Talvez tenha sido um olhar fugaz como este a despertar-me para a vida e a fazer-me mudar.
Nunca fui muito influenciado por grandes discursos, sermões ou histórias. Já alguns olhares, abraços ou beijos foram capazes de alterar totalmente o sentido minha vida. É como se, de repente, o voo de uma borboleta pudesse alterar o percurso e o destino de um navio com um leve golpe de asas. É isso um beijo, por exemplo.
Andei por aí. Abriguei-me em alguns Amores do tamanho de um casarão até ser expulso. Digo-o assim, porque é sempre a sensação que nasce com o fim duma paixão, a de se ser um sem-abrigo. Depois a realidade transforma-se lentamente em memórias líquidas e incertas e nós andamos por aí até acabarmos no cruzamento deserto duma pequena cidade inglesa. Os semáforos funcionam sem motivo aparente, como quase todo o mundo, mas um olhar furtivo acordou-nos e faz-nos perceber o bom que é estar vivo.
Está a chover.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
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