31 agosto 2018

«Erotismo, sensualidade e sexualidade como potências da vida» - João da Mata

Foi Wilhelm Reich, o mais radical dissidente da psicanálise freudiana, que trouxe a importância do exercício pleno da sexualidade como arma revolucionária, capaz de promover uma intensificação da vida. Apesar de hoje assistirmos a uma proliferação de temas relacionada ao sexo e mesmo a um amplo comércio em torno dele, parece que estamos distantes da revolução sexual que Reich defendia.
Para Reich, os elementos envolvidos nos processos de adoecimento, tanto físico quanto emocional, estavam relacionados à presença de práticas e discursos moralizadores e suas consequências antilibidinais. Segundo ele, a psicologia deveria andar junto com uma análise crítica das relações de poder, a fim de romper com práticas autoritárias presentes nas religiões, escolas e famílias para promover uma revolução social e sexual, simultaneamente. Sua psicologia vai em direcção a uma política sexual libertária, implicada na criação de sociabilidades menos disciplinadoras.
Numa conhecida afirmação, Reich diz que “a família espelha e reproduz a estrutura de Estado”, produzindo ali relações de dominação que vão, aos poucos, limitando a capacidade de viver com mais liberdade e poder crítico. Os casamentos entre homem e mulher – baseados na posse, no machismo e em relações monogâmicas compulsórias – assim como a noção de obediência aos pais criam uma estrutura vertical entre os membros implicados. A partir do núcleo familiar, estende-se, segundo ele, uma série de outras práticas sociais, nas quais a hierarquia é entendida como condição natural.
Parte de sua crítica à família, assim como às religiões e escolas, ancorava-se no facto de que estes espaços inibem a sexualidade livre das crianças e jovens. As suas práticas disciplinares actuam não apenas sobre o comportamento sexual, mas também sobre a curiosidade intelectual, a criatividade e a espontaneidade. Seria justamente aí, através de processo disciplinares e de controle, que surgiriam indivíduos obedientes ao princípio de autoridade.
Resumidamente, para Reich, este processo inicia-se ainda na fase infantil: ocorre quando a criança é bloqueada na sua curiosidade sexual, o que também a torna tolhida na sua capacidade de questionamento intelectual. Além disso, os mecanismos inibidores, permeados de afecto e chantagens, instauram-se no corpo, produzindo gestos e movimentos robotizados e sem vitalidade. Indivíduos enfraquecidos no seu querer e na afirmação das suas vidas tornam-se temerosos da liberdade e identificados com a atitude autoritária. A mistificação em torno da autoridade encontra assim terreno fértil para instauração de políticas fascistas.
O que interessa mesmo na perspectiva de Wilhelm Reich é uma intensificação da potência da vida, por meio de um vitalismo que perpassa o corpo e a intersubjectividade. A sua aposta reside no exercício da sexualidade como produtora de saúde. No entanto, via uma diferença na relação sexual como fusão junto ao outro e a mera realização do coito, já que sexualizar excessivamente a vida, poderia criar uma perigosa falácia de libertação. Para Reich, a afectividade seria capaz de garantir uma entrega emocional, que por sua vez seria responsável por uma dissolução circunstancial do ego, e que provoca uma entrega plena ao outro.
Neste sentido, a sexualidade é bem mais ampla que o acto sexual em si, mas está envolvido com a própria vivência quotidiana do erotismo. A questão é que hoje não se distingue mais o erotismo propriamente dito e a pornografia, que é uma deturpação da noção pura de erotismo. Enquanto a experiência erótica está relacionada a tudo que diz respeito ao plano das sensações corporais, a pornografia alimenta-se das fantasias e imagens racionais. Vivemos o erotismo hoje em termos de consciência. Ou seja, o erotismo foi limitado ao relacionamento sexual. Daí supõe-se que o erotismo só serve para a prática do sexo. Este esvaziamento do erotismo leva-o a ser apenas um instrumento para a efectivação do acto sexual.
Erotismo e sensualidade, apesar de quase sempre estarem relacionados com o acto sexual, estão também para além dele. Uma existência sensualista diz respeito ao mundo das sensações, que percorre o corpo afectado pelos sentidos. Assim, é possível sentir uma certa dose de sensualidade no acto de comer uma boa comida, de escutar uma música, em contemplar a beleza. Ou seja, a sensualidade está relacionada com todo o prazer que afecta o corpo. Uma existência erótica, percorrida de sensualidade, não precisa apenas do acto sexual para manifestar-se. Ela está presente nos pequenos gestos, no dia a dia, intensificando a vida, percorrida por energias e vitalismo.
O que torna o erotismo algo pornográfico é fruto da mesma moral conservadora, base da cultura patriarcal, que procura suprimir os impulsos sensuais e naturais. Isso leva à criação de impulsos secundários, tornando a sexualidade uma mera realização do coito, muitas vezes desprovida de qualquer sentimento. Ao mesmo tempo, ergue-se um conjunto de leis e normas moralistas desastrosas contra a mesma mente humana pornográfica criada pela repressão da sexualidade natural.
Para Reich, a neurose constitui-se durante as principais fases da vida: primeira infância, adolescência e idade adulta. Os bebés e as crianças convivem com uma atmosfera familiar muitas vezes neurótica, autoritária e conservadora do ponto de vista sensual e sexual. As exigências dos pais em relação à boa conduta, ao bom comportamento e às autorrestrições, produzem o que na puberdade se configura como desinformação e desconhecimento para uma vida sexual satisfatória. Por fim, na idade adulta, a maioria das pessoas vê-se envolvida na armadilha do casamento compulsório, muitas vezes desprovido de um real prazer afectivo e sexual.
Em «A função do orgasmo», Reich mostra como o orgasmo sexual pleno, além de proporcionar grande prazer, tem uma segunda função capaz de produzir uma poderosa descarga energética, que dissolve as tensões musculares e restitui circunstancialmente o equilíbrio da energia vital. Isto seria alcançado graças ao que Reich chamou de “potência orgástica”. Ao relacionar a neurose às perturbações da função genital, a actividade orgástica passa a ter um significado importante no tratamento e elaboração da saúde somática e psíquica de seus pacientes.
Se a ênfase colocada por Reich na economia sexual de seus pacientes pode significar uma simplificação das questões envolvendo o adoecimento, serve para alertar as diferenças entre casamentos como contrato social e económico ou uma associação pautada no desejo. Além do mais, Reich vai estender a noção de orgasmo para além do sexo, ampliando o seu conceito para diferentes áreas da vida. Ou seja, ter orgasmos significa entregar-se à plenitude e abandonar-se às experiências: deixar de ser governado.
E neste sentido, a construção de uma vida erótica está apoiada nas experiências diárias dos nossos tesões: naquilo que nos traz prazer, beleza e alegria. Para além do tesão como desejo sexual, esta potência emerge nas amizades, nas relações entre pais e filhos, na relação com o trabalho e a criação, enfim, nos inúmeros instantes que fazem da vida acontecimentos imanentes e afirmativos. Possivelmente, a revolução sexual que Wilhelm Reich defendia estava relacionada a esta erotização do quotidiano.

João da Mata
Dr. em Psicologia – UFF e Dr. em Sociologia – Univ. de Lisboa.
Trabalha com a Somaterapia há cerca de 25 anos.

Texto publicado na revista brasileira Nin - volume 1 - 2015.

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