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21 março 2016

«Deixo-te amanhã» - João

"Deixo-te amanhã. Hoje sou tua, esta noite sou inteiramente tua, somos nós. Mas deixo-te amanhã. Vens buscar-me, vamos ao cinema. Vamos para o escuro como adolescentes com tesão, ver um filme daqueles que eu apenas posso ver contigo porque só tu o entendes comigo, e as mãos passeiam em escândalo, sorvemos a história, o enredo, com pressa de trocar aquele escuro por outro, mais nosso, mais pequeno, mais apertado. Depois corremos para comer qualquer coisa, só para não levarmos a noite assim, com fome, porque precisamos de energia. E vamos embora. Vamos foder. Vamos foder muito, vou foder-te até tombar, e se tu ousares tombar primeiro que eu, acordo-te à estalada, salto para cima de ti, ou então deixo-me enroscar em ti, e voltamos a foder quando o Sol começar a vencer a Lua. A princípio estarei feliz. No começo da noite, estarei muito feliz contigo. Depois, muitas horas depois, levas-me o pequeno-almoço à cama, tão amoroso que és, e eu já a entristecer-me. Vamos para a rua. A cidade vazia com avenidas largas quase despidas de tudo, excepto nós, de mãos nas mãos, como eu gosto e preciso, como tu gostas e precisas. Estou já tomada por um vazio e por uma sensação de tristeza enquanto tu sorris sem saber. Porque de noite era tua, mas hoje, hoje eu deixar-te-ia, e passo a passo, quando te digo adeus, olho-te e "
João
Geografia das Curvas

14 março 2016

«Fode-me» - João

"As escovas varrem o vidro apressadas a tirar a água que cai do céu com força como se fosse eu a vir-me em ti, e eu tenho as mãos no volante, e eu tenho as mãos em ti, e deslizo na estrada como se deslizasse na tua cona, como se o teu corpo fosse manteiga ao qual não me conseguisse segurar sem as unhas espetadas na minha carne, como anzol, como aperto de tesão, e o telefone vibra, o meu corpo vibra, como tu vibras, como tu tremes, e eu não olho, não posso, mas quero, mas olho, e vejo, vejo que queres fazer tudo comigo, e eu de mãos no volante, e eu de mãos nas tuas mamas onde escreves fode-me com todas as letras e murmúrios, e queres fazer tudo, queres engolir-me o caralho entre os lábios húmidos, queres que me venha a chamar pelo teu nome como sedento por água num deserto qualquer, e de mãos no volante, e eu de mãos nas tuas coxas, e eu de mãos nas tuas nádegas a puxá-las para mim, a entrar mais fundo, a enterrar-me no teu corpo como se ele fosse terra a engolir-me, a chuva a cair no vidro com violência, eu a deslizar, os corpos a ir um contra o outro, eu a puxar-te o cabelo num movimento de aqui e agora, de o teu corpo ser tão meu quanto o meu teu, os corpos a tremer, um frio a tomar conta do calor, de uma cona que pinga, de um caralho que correu como um rio, e eu não posso, não quero, não devo, mas olho, e vejo, fode-me, dizes, fode-me."
João
Geografia das Curvas

07 março 2016

«No fim» - João

"No fim parece que venceste. Perdendo, venceste. Pensou. Retirou as mãos dos remos, os velhos remos que segurara antes, e deixou-se embalar na corrente. E em terra, a pé seco, a luz do farol desligou-se. Entrou a porta, na chuva dos olhos, olhou vagarosamente os interruptores, e desligou-os. Um a um. Clac. Clac. Clac. Com estrépito se cortava a corrente, não a dos remos, que essa continuava. A corrente que passava nos dedos e electrizava tudo à passagem, a corrente que deixava as luzes acesas dia e noite, a sinalizar o caminho de volta, a estrada na água, os salpicos. E feitos os cortes, fechadas as portas, afastou-se, tremendo de um frio que não era o seu frio. A corrente levou o bote para terra, e saltou de lá, apressada, deitou mão à porta agora escura. E ninguém lá dentro, nada, só brisa de saudade e um choro intenso de quem tinha afinal tudo quanto queria ter, da escolha que sem fazer tinha feito, de quem tinha mais do que queria e menos do que precisava. Contos de desencontro, havia naquele farol. Humidade flutuante, livros de papel amarelecido numa estante esquecida, e tinha sido tão bom, não? Que fantástico, que maravilha, que explosões no céu, de deixar toda uma aldeia iluminada como sol do meio-dia, e aquele contraste, a antítese, como se retirasse tudo o que tinha dito e gemido. No fim, no fim parecia que tinha vencido, tudo era como queria, as coisas em ordem, as caras de sempre, as ausências de sempre, os assuntos sem assunto, os toques sem choque, sem foda-se, sem nada. Vazio. O vazio que era a melhor coisa a seguir."
João
Geografia das Curvas

29 fevereiro 2016

«Telefone» - João

"A mesa. Tu. Eu. A mesa. Tu. O telefone. Eu. Pinga água na rua, multiplicada por milhões, assobia o vento e as árvores dobram-se. A mesa, tu, o teu telefone, eu, algures, e enquanto alternas o olhar entre os pingos da rua e o telefone, estás mais perto dele, e a tua mão lança-se, e lança-se, e agarra, aperta, o ouvido, o telefone, e eu do outro lado, e pergunto se me queres foder, e tu dizes que sim, que queres foder-me, muito, e bem, e desligas, desligo, deslizamos e estamos naquele espaço asséptico, reino de foda, e arranco-te a roupa da corpo, movimento as mãos na tua pele e quase aposto conseguir ler-te escrita como tatuagens, e avanço para te arremessar contra a parede mas sou travado, e dou por mim dominado, atirado, eu, para cima da cama, e lanças-te à minha roupa que tiras à pressa, dás-me a ordem, assertiva, de me deixar ficar, e começas a esfregar a tua cona no meu caralho, devagar, e tudo é confusão de corpos, tão depressa ma esfregas quanto depois te sentas sobre a minha boca para te provar os sumos doces que deixas em mim, e não me autorizas a fazer nada, brincas como queres, fazes o meu caralho desaparecer na tua boca, abanas a tua cona ao meu olhar como que a provocar-me, que o caralho é para ali que vai, que me vais foder tinhas dito, eras tu, a mesa, o telefone e eu, e eu tinha perguntado, tu respondido, que me ias foder, que me querias foder, e no fim estás a fazer-me um trapo, um objecto duro que deixas, enfim, entrar em ti, e montas como uma sela, corres apressada pelos campos, num cavalgar imaginário de uma cama a ranger, e a tua cona a comer-me a pouco e pouco, até te vires, até me vir, as minhas mãos nas tuas costas a puxar-te para mim, a entrar fundo, e afinal a mesa, o telefone, tu e eu, espaços de foda, e a cona a pingar, o caralho a secar, a tesão a fluir. Queres foder-me? Quero, quero muito, disse."
João
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22 fevereiro 2016

«Diz que sim» - João

"Preparas uma cama para nós, e eu contorno paredes num silêncio felino até estarmos, frente a frente, num espaço secreto e longínquo, que se encheu de nós, que criaste com carinho para amar, e depressa nos despojamos das vestes, depressa nos colamos com a pele na pele, depressa estamos nessa cama que fizeste apenas para se desfazer em pouco tempo quando nos misturamos um no outro, quando dizes que sim, quando no caos dos nossos corpos dizes que me amas, que és minha, e nessa cama, nesse espaço escuro contrariado por uma luz nocturna citadina que detalha as sombras, somos um no outro, exaustos na nudez, juntos no calor que nunca se explica, e noites passadas quase em branco, com as tuas cores, os teus cheiros, a viagem solitária na estrada vazia a galgar alcatrão e traços interrompidos como contínuos da velocidade, a cidade a nascer e nós já mortos de saudade, de um amanhã tão tardio, de um hoje tão longo. Dás-me comida para o caminho, e um beijo. E eu faço-me à chuva. A evaporar o teu cheiro, embalado e preenchido. E dizemos que sim, que é isso."
João
Geografia das Curvas

15 fevereiro 2016

«Não penses mais nisso» - João

"Aquilo rebentou-lhe nos ouvidos como salvas de metralhadora. Sou uma puta, disse. Pensa que sou uma puta. Sei o que quero, sei ao que vou. Não a puta do prazer que apetece ter, não a puta saborosa que apetece dizer ao ouvido no vaivém molhado dos músculos, muito longe da puta dos orgasmos violentos de cravar unhas no corpo. Nada da puta doce que aquece. A puta pragmática. A puta com um plano. Faz de conta que sou uma puta e não penses mais nisso. Aquilo rebentou-lhe nos ouvidos e numa dor no corpo, num desespero, uma agonia lenta, a imagem daquilo como fita estragada que se repete, a invasão, destruição, mas não penses mais nisso, disse-lhe. Tenho um plano. E esse plano vai bem mais para lá do agora. E esse plano um dia devolve-me à puta doce que aquece. E então sim, podes voltar a pensar na violência que crava unhas na carne."
João
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08 fevereiro 2016

«Vem ver a vista, amor» - João

"Vem ver a vista amor. Subia o elevador, veloz, a gaiola de metal a cair e eles a subir, as malas à espera, e explicações, tantas explicações, e eles só queriam que os deixassem sozinhos. Não tinham interesse em botões, em saber como se abria ou fechava alguma coisa, haviam de descobrir, por tentativa e erro, de uma forma bem diferente daquela como se haviam descoberto, que só tinha uma tentativa e nenhum erro. Vem ver a vista amor, que daqui é escura como em qualquer outro local a esta hora, mas estamos bem alto, bem acima, o nevoeiro e as trevas da rua dão ainda mais brilho a esta cama alva e suave, e por fim estamos sós e se havia a promessa de um agora não, depois, mentirosos foram e tudo quebraram, empurrou-a a sorrir para cima da cama, e também ele lhe subiu, avançando lentamente sobre os joelhos e depois a tirar-lhe a saia, os sapatos, a desapertar-lhe a blusa, a despir-se, os beijos, as mãos a correr os corpos vivos, os dois afundados numa cama fofa que os envolvia, os gemidos, e não é isto maravilhoso amor? Não é isto fantástico, bom mas bom, tão melhor que a vista lá fora. E ela que dizia que depois de a provar não ia querer mais nada tinha de admitir que ele, ele era afinal a grande foda da vida dela, e nenhum mal haveria nisso, se fosse apenas a foda. Mas afundados na cama alva estavam metidos em algo mais que isso."
João
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01 fevereiro 2016

«Rendição» - João

"Dou por mim a olhar para ti, e tu não sabes o que estou a pensar, porque sorrio contigo e tu divertes-te comigo, eu alinho nas tuas conversas e é quando dou por mim a pensar que não sei bem quando é que decidi que queria abrir as minhas pernas para te receber dentro do meu corpo. E depois, depois de alguns instantes, pergunto-me se não o sei, ou se não quero saber, porque isso pode não ser importante, ou porque pode querer dizer que muito mais do que uma sedução, fui vítima de mim mesma, apaixonei-me por aquilo que vi, pelo que tu és, e não tanto pela vontade crescente de da roupa fazer estilhaços.

Talvez já estivesse rendida a ti quando fui ao teu encontro debaixo de um Sol abrasador, e olha que eu bem te avisei, eu bem te disse que tivesses atenção, que tomasses nota, que eu não fazia aquilo por um qualquer. Talvez já estivesse rendida quanto te vi de calções e gostei de imaginar as tuas pernas presas nas minhas. Talvez já estivesse rendida muito antes de perceber que o estava. Quando te procurava como companhia numa tarde de Verão, perguntando se estavas por perto, porque eu estava, e a ressentir-me porque a tua resposta não chegava, e eu a querer que chegasse, e eu a querer que viesses.

Nos dias em que repeti o teu nome vezes sem conta enquanto sentia o que temia já não existir, nos dias em que te disse o quão louca estava por ti, do quanto era tua, nesses dias em que sabia que estava rendida, estava só atrasada a reconhecer o que já tinha muito, muito tempo. Rendi-me cedo, rendeste-te cedo também, a resistência a que nos votámos é que foi admirável, e enquanto penso em ti, enquanto sorrio com as coisas que eu sei que tu dizes, enquanto imagino o que estás a fazer, penso no admirável que é tanta rendição nunca ter tido bandeira branca agitada ao vento, e porque, provavelmente, nunca a terá, rendida que permaneço, mas ainda de armas apontadas a ti e camuflada como nenhum camaleão alguma vez conseguiria."

João
Geografia das Curvas

25 janeiro 2016

«é tudo uma questão de toque» - João

"Tiveram uma separação difícil. Para ambos, entenda-se. É natural que depois de quase vinte anos a partilhar a vida com outra pessoa não se saiba aproveitar a liberdade de estar só. Estar só é bom, mas requer treino, experiência e aprendizagem. Talvez por isso mesmo, alguns meses depois ainda telefonassem um ao outro regularmente, mais para ouvir do que para falar. A voz do outro fazia-lhes falta.
Combinaram tomar café um Domingo, depois do almoço, mas acabaram na cama dele numa tarde de sexo de que já não se lembravam de ter. Sem os mecanismos de quem dorme lado a lado todos os dias e com a improvisação e energia de quem acabou de se apaixonar. Mesmo assim não repetiram a experiência. Sabiam que o caminho não podia ser o de regresso. E assim chegaram finalmente ao silêncio entre ambos.
Passado alguns meses ela apaixonou-se e tornou a casar. Pelo menos foi o que ele ouviu dizer. Nessa tarde chorou um bocado, sem ninguém ver, e depois convidou uma garrafa de uísque para passar a noite. A ressaca fez-lhe bem. Foi com dois comprimidos para as dores de cabeça e uma garrafa de água com gás num café dos subúrbios que teve olhos pela primeira vez para outra mulher. Não que se tenha apaixonado, mas pelo menos interessou-se. Sorriu.
Ela era morena, pele muito branca e um sinal no queixo. Não seguia nenhum padrão especial de beleza, mas parecia ter em excesso aquilo que lhe faltava a ele: a vida resolvida. Além disso era simpática sem ser dada e era decidida sem ser arrogante. Enfim, um luxo. Tinha comprado uma garrafa de Sumol de Laranja de litro e meio, quatro pães da avó e tomado café ao balcão. Nunca mais a viu, mas o momento foi interessante. Tão interessante como uma data de nascimento.
Depois de nascer vieram as dores de crescimento. Noites de sexo falhado e dias de Amor empatado. Era quase sempre uma questão de pele. Ao primeiro toque numa mulher percebia a diferença e uma tonelada de memória caía-lhe em cima. O que ele mais ansiava era pelo momento a seguir ao sexo, aquele em que se olha para o tecto e se descobre realmente o outro, já depois de lhe ter conhecido o corpo.
À partida, seria num desses momentos que ele se apaixonaria de novo, não fosse o Amor ser sempre o contrário do que pensamos que vai ser. Comprou um bilhete de autocarro sem querer ir a lado nenhum, apenas para dar uma volta à cidade sem ter que se esforçar. As luzes dos candeeiros públicos misturavam-se com a negritude do fim de tarde numa estranha aguarela abstracta. Uma mulher sentou-se ao lado dele e adormeceu em poucos minutos. Encostou-se ao seu corpo como se fosse uma cria de pássaro num ninho e deu-lhe uma mão. Ele deixou-se ir até ao fim, respirando suavemente para não a acordar.
É tudo uma questão de toque, pensou."

João
Geografia das Curvas

18 janeiro 2016

«No fim ganha alguém?» - João

"Acordei num mar de destroços e estilhaços em terra. Como se tudo fosse mentira, o futuro um buraco e o passado uma negação, como se tivesse sido joguete ou arremesso, como se todas as palavras tivessem jorrado da boca apenas para quebrar um silêncio incómodo, sem nelas haver qualquer significado, como se fossem vazias de tudo, desligadas dos momentos e dos gestos quando se diziam, como se a falsidade cobrisse, como manto pesado, todo o espaço onde estou, onde estive, onde tenho estado.

Acordo envolto em tristeza. Escura, dura e pesada, como se tivesse sido cilindrado, como se nunca tivesse nascido nem cruzado as mesmas ruas, aquecido os mesmos espaços, como se nunca tivesse fugido na noite e na chuva, com um iogurte e um pacote de bolachas para me aconchegar o estômago de todas as horas de cansaço. Como se a mentira fosse a tua face. Como se o vazio fosse o teu corpo. Como se o chão fosse tapete voador num tornado.

E embora eu recuse acreditar nisso, embora recuse aceitar tudo o que acorda comigo nesta manhã, embora não reconheça os destroços e estilhaços, é o que vejo, é o que me mostram, e o caminho tem de ser o meu, por mim e para mim, como ontem, como sempre. Varrendo devagar, até à tempestade seguinte. Vigiando. Como eterno castigo."

João
Geografia das Curvas

11 janeiro 2016

«A outra página» - João

"Já chega mesmo, disse. Usei o teu nome, escrevi-o pela última vez naquelas linhas, e disse-te que já chega, mesmo. Que não perdesses tempo, que não perguntasses, que não quisesses saber. Porque eu estava noutra, noutra coisa qualquer, nem que fosse a mesma pintada com outras cores, com outros cheiros, nem que a página fosse de papel reciclado. Não perguntes, não queiras saber, não queiras lembrar. Disse que chegava, e acrescentei, repeti, para que te magoasse um pouco mais. Que desaparecesse da tua memória, porque não somos. Fomos mas não somos. Fomos mas não existimos mais. E disse-to com lanças, facas, garfos, petardos, frio intenso. E se me visses, se sentisses, se estivesses dentro de mim, saberias como tudo quanto te dizia era o contrário do que se agitava dentro de mim, e de como fiquei tão exausta de me combater, da força que tive de encontrar para colocar o borrão escuro que marca o final de uma frase, da força que tenho de encontrar para manter a frase assim, com ponto."
João
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04 janeiro 2016

«Ruído intenso» - João

"Se de nada mais pudesse avisar, diria que há ruído no canal. Que há poluição. Que nenhuma certeza existe senão aquela que vive dentro das nossas cabeças e que as palavras não traduzem, nunca, da forma ideal. Que aquilo que se diz, é distorcido, deturpado, que nunca controlamos nem sabemos das razões e intenções de quem carrega as cartas na entrega do correio, que a única maneira de se saber o que é e o que não é, a única maneira de saber porque razão as coisas são como são, é quando as almas se falam directamente, uma e outra, porque tudo o que circula nos entretantos do tempo, carrega poeira que mancha e desvia, enviesa e maltrata, e na dúvida, na dúvida o medo instala-se, na dúvida a zanga aumenta, o auto-engano singra, e tudo isso é de se combater. Se nada mais pudesse alertar, diria que tudo o que ultrapassa o um mais um, é demais."
João
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28 dezembro 2015

«Não estás a entender» - João

"Não estás a entender, dizia-lhe, e os corpos agitavam-se, e ela chorava e resistia, e dizia que não podia, que não devia ser assim, que tinha de ser mais, que só podia ser mais, e ele a pegar-lhe e ela a contorcer-se, e os pulsos a querer fugir e ele a agarrá-los com força, e a encostá-la à parede com força e a dizer-lhe ao ouvido que não estava a entender, que não era nada disso, e ela a debater-se como se fosse uma virgem da Ilha dos Amores numa fuga agitada mas cheia de vontade, a dualidade de não querer e querer tanto, e o sexo a acontecer entre eles, a parede a segurá-los, mais a eles que ao resto do edifício, e ela a queixar-se que era pouco, e ele a insistir que não era nada disso, e depois, depois de ela se vir e tremer até ao chão, sem forças, ele a pegar num casaco quente e a cobrir-lhe o corpo a arrefecer, e a aninhar-se frente ao seu rosto e a repetir-lhe que não tinha entendido nada, que não era nada daquilo, e ela percebeu então. Percebeu por causa do casaco quente, dos olhos dele, e porque não se foi embora como nas histórias de foda, dos dias curtos de sentir."
João
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21 dezembro 2015

«De costas para mim» - João

"Encontro-me contigo quando estás de costas para mim, a olhar o horizonte lá longe. O horizonte é sempre longe, bem vês, é o paradoxo de Zenão na ponta dos dedos, sempre que os levantas para tocar o horizonte que sempre te foge. A ti, a mim, a todos. Mas interessa tão pouco o horizonte se te encontro assim, quando estás de costas para mim, e a tua nudez me convida, as tuas linhas invadem-me os olhos e dizem-me que o corpo, esse corpo, é meu antes de ser teu, e num passo estou contigo, estou em ti, e pulsamos juntos, num mesmo movimento, e se ontem nos olhámos, se ontem fizemos o mais demorado amor, hoje fodemos, só porque sim, só porque podemos, porque conseguimos, porque foder e amar são velcro, são coisas que connosco se pegam e ficam unas, são aquilo que são, para nós e mais ninguém, mais nada. E de um gemido forma-se o meu nome na tua boca, a cabeça que oscila para um lado e o pescoço que fica livre para um beijo, a orelha que te mordo e as mãos a percorrer as estradas que te levam onde eu sei que vais querer estar, onde eu vou querer estar contigo, porque conheço todos os teus caminhos, sei como e para onde correm todos os teus rios, e isso, sem mais, é de nos fazer sorrir e ao mesmo tempo tremer sempre que nos encontramos assim, quando estás de costas para mim e me ouves chegar, e mesmo sem nos olharmos, sabemos já o que estamos a pensar, e sorrimos um para o outro sem o ver, sem ver o sorriso, nem o horizonte, que fica longe e longe estando sempre nos puxa."
João
Geografia das Curvas

14 dezembro 2015

«Abismos vorazes» - João

"Tu és um homem bom, disse-lhe. E isso, em si mesmo, seria para muitos uma surpresa. Não que ele fosse um homem bom, mas que ela lho dissesse, pois se para tanta gente ela era um bicho frio, de sangue gelado, com a rispidez pronta ao disparo; mas não para ele, para o homem bom, que a sabia diferente de tudo isso. Se alguma coisa sabia, essa pelo menos era segura. Garantida. Não havia ali bicho frio, não havia sangue gelado. Mas ninguém sabia. Também por isso era algo diferente. Especial, arriscar-se-ia dizer. Ou porreiro. Bom mas bom. Escolhessem o que escolhessem, se o significado orbitasse em torno disso, estaria bem. Que ele era um homem bom, dissera-lhe. Parecia trazer pouco valor essa observação, porque se abriam abismos vorazes sob os seus pés, que lhe queria bem, e que por isso, nem que só por isso, ficaria feliz se ele estivesse feliz, que o queria de pé, organizado, firme. Que sempre seria uma pessoa feliz se ele estivesse feliz, e que sentiria na sua própria pele a mesma tristeza que ele, quando ele estivesse triste. E depois prometeu que olharia sempre por ele, que estaria presente para o ajudar, como uma mão invisível que embala ou trava a queda, que nunca mais, em tempo algum, se faria visível. Que estaria morta para todo o sempre, que também ela seria comida pelos abismos esfomeados de gente boa. E, para o facilitar, far-se-ia má, vestir-se-ia de ríspidez, arrefeceria o seu sangue até congelar, seria cruel, e sobretudo não seria mais. Dissolver-se-ia no ar como nevoeiro ou fumo. E ele, ele que fizesse o seu caminho. Porque ele é um homem bom, disse-lhe."
João
Geografia das Curvas

07 dezembro 2015

«Vigésima-quinta hora» - João

"Na vigésima-quinta hora ele entrou, nu, na sala clara com uma cadeira ao centro, e sentou-se, no mais absoluto silêncio. Minutos depois, ela entrou, de lingerie escura, e caminhou até ele. Silenciosa. Fez-lhe sinal para que nada dissesse, nada falasse. Afastou-lhe as pernas e puxou-o um pouco mais para a frente da cadeira e com isso sentou-se sobre uma das suas coxas. Assim que o fez, ele sentiu-se molhado, percebeu que ela estava perdida para os sentidos e para o mundo, como ele, e enquanto as mãos dela se apoiavam nos seus ombros, cravando as unhas na sua pele, oscilava a cintura esfregando a cona na coxa dele, até aquela coxa ser uma superfície sem atrito, e ela a morder o lábio, ela a vir-se, a tremer, o corpo em convulsão como se uma corrente eléctrica a percorresse. Depois, levantou-se, passou a mão pela cona encharcada e depois essa mesma mão pela boca dele, beijou-o, virou-se, e foi-se."
João
Geografia das Curvas

30 novembro 2015

«Número» - João

"Para eles és um número, uma pessoa que passa, mais uma, mais um, menos, tanto se lhes dá, diriam que é igual ao litro. Para eles és corpo dado às balas, és esqueleto a quem tirar o tapete, tirar chão, face sem expressão, corpo sem rosto, uma coisa. Uma coisa que hoje está aqui, amanhã ali, e a memória é vaga, não reconhecem valores, não sabem o que fizeste, se fizeste, se ficou por fazer. Para eles és um número entre muitos. Para mim és a pele que me veste, os cabelos que me fazem cócegas, és as pernas que se lançam sobre mim para me segurar no colchão, no sofá, no chão, és as mãos que me apertam em abraços quentes. Para mim és a boca que me beija, os olhos que brilham ao som do meu nome, mulher que faz o mundo acontecer. Tu sabes que também és a cona que recebe o meu caralho, os dedos que mo seguram e encaminham se no calor do momento nos desencontrarmos, és o meu par de uma dança primitiva, o outro lado do espelho. Para eles és um nada. Para mim, mal tive tempo de começar, e não teria linhas suficientes para terminar. É por isso que eles são apenas eles, e eu sou eu. É por isso que eles nunca te viram e eu sempre te vejo. É por isso que eles estão perto, e eu não."
João
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23 novembro 2015

«Batalhas campais» - João

"Leio algumas mulheres regularmente, o que poderia considerar-se estudo porque os homens já eu conheço, e Deus sabe que demasiados daqueles que partilham o género comigo são de tal modo primitivos que lê-los se torna penoso. Conto poucos homens que aprecio ler, e as mulheres, na sua complexidade – que não é mais ou menos que os homens complexos, apenas diferente no âmago -, oferecem leituras mais interessantes. Há uma matéria, porém, que me choca em alguma escrita feminina, e que se prende com a maternidade, com o ter ou não ter filhos, com o que fazer com eles. Choca-me não pelo conteúdo das opiniões, mas pela sua forma, pelo extremar de posições que é sempre pior entre mulheres.

Não nascemos todos para ser pais, mas na dança de conas e caralhos – ah, o core business desta Geografia afinal! – os filhos às vezes acontecem, com graus variáveis de premeditação, desejo e oportunidade.

Algumas das mulheres que leio são, ou aparentam ser, fortemente contra a maternidade. Enfurecem-se com idas a restaurantes onde estão crianças, reclamam espaços reservados a adultos, alinham em campanhas ferozes contra a amamentação, acusam os pais e mães de ter uma existência triste por comparação com os adultos que não têm filhos, em síntese, colam na testa daqueles que são pais uma etiqueta com um “idiota” escrito a marcador de ponta grossa e resistente à água. Talvez porque são as mulheres que transportam os filhos nas suas barrigas durante alguns meses, é a elas que eu vejo discutir isto. Os homens raramente se ocupam destas conversas, remetem-se ao sacrossanto futebol – que felizmente me transcende -, ao automobilismo ou, e isto sim acho bem, à apreciação das curvas femininas. É raro haver um comentário crítico da maternidade que não descambe numa batalha campal entre mulheres, com acusações diversas e argumentos gastos. “Não sabes porque não és mãe”, “quando fores mãe mudas de opinião”, “os filhos portam-se mal por causa dos pais”, e tantos outros que não reproduzo por fastio. Não nascemos todos para ser pais, mas na dança de conas e caralhos – ah, o core business desta Geografia afinal! – os filhos às vezes acontecem, com graus variáveis de premeditação, desejo e oportunidade. E talvez não faça sentido reagir com tanta violência às opiniões de quem os tem e de quem os não tem. E talvez também não faça sentido arranjar formas mais ou menos subtis de chamar idiotas aos que são pais e mães, ou de sugerir que as suas vidas são deprimentes porque têm filhos que berram e que os deixam cansados. Todos os pais têm momentos em que lhes apetece atirar os petizes pela janela. Possivelmente os nossos pais também o pensaram. Os pais de quem critica a maternidade também o terão feito, e no entanto, não tivessem eles vivido essa experiência, quem critica não o faria. Não estaria cá.

Sim, é verdade que os filhos podem ser maçadores. Dão trabalho. Sujam-se, cagam no chão, tiram sozinhos fraldas cheias de merda, são insuportáveis quando têm sono, comam o que comerem pingam do queixo, sujam a roupa, fazem birras por coisas que a nós parecem insignificantes, mas também são aqueles que se deitam ao nosso lado e dizem que gostam muito de nós, são aqueles em cujo cabelo se encontra a paz quando lhes fazemos carícias (há outros cabelos e outras formas de paz, e de pás, como sabeis), e a forma como cada um vive os momentos mais complicados – i.e., os mais sujos e barulhentos – é coisa nossa. Talvez as nossas vidas sejam um bocadinho deprimentes em alguns momentos da paternidade, assim como as vidas de quem não tem uma experiência familiar podem ser um pouco vazias de sentido a dado momento, mas nada disto define uma vida inteira. São curvas que fazemos, e o extremar de posições, que da normalidade ao insulto demora um segundo, é um disparate que eu convidaria as mulheres a não alimentar. E só não convido os homens a também não alimentar essas discussões porque sei que a maioria deles está a ler um jornal desportivo, e os que não estão provavelmente pensam qualquer coisa parecida comigo. Quem não quer ter filhos, viva com isso e divirta-se como ache melhor. Quem os tenha, ature-os e ame-os como deve. E deixem-se disso de achar que uma vida é melhor que a outra. Na soma de momentos e opções, nenhum caminho é totalmente certo."

João
Geografia das Curvas

16 novembro 2015

«O teu cheiro» - João

"Pensei tomar um duche, querido. Pensei. Mas tinha o teu cheiro em mim e isso estava bem assim, preferi prolongar esse embalo doce e deixei-me ficar, deixei-me ficar como quando me envolves com os teus braços. Eu gosto que me envolvas. Gosto da tua pele na minha. É uma coisa que eu não vi em nenhum manual de instruções, nunca ninguém me avisou que isso acontecia. Não vi nenhum aviso de ti. Mas gosto da tua pele na minha. Não tem uma explicação. Nem precisa. Como tu a leres os meus olhos. Nunca me avisaram. Eu não sabia. Mas tive medo, tenho sempre medo, medo que leias nos meus olhos alguma coisa de que não gostes, e por isso fujo, desvio o olhar, escondo-me à tua vista. E é sempre tão inútil, tu sabes. É sempre tão inútil se mesmo assim me lês. E eu não sabia disso. Não sabia que alguém me podia olhar como tu. Não estava habituada. Devia existir um autocolante de perigo. Tu devias ter um autocolante de perigo colado na testa. Nem que fosse para eu to tirar, como se fosse roupa, como a roupa. A roupa que nunca nos trava para fazer amor. Fazer amor querido. Essa maneira que temos de fazer amor, que nunca nos deixa dúvida nenhuma. De tudo, pelo menos isso. Se certezas tenho, tenho essa. Como quando entraste em mim, e os olhares a cruzar-se, e eu, então, também te li, também vi, e eu queria tanto, quero tanto, tu a deslizares por mim sem cansaço, e eu a dizer baixinho, quase só para mim, oh foda-se, que isto é tão bom que só pode ser impossível. E então descobri como era feliz ao teu lado, como adorava estar contigo. Em qualquer lado, de qualquer modo, a amar, à bruta, a disparatar, a discutir. Mesmo triste, era feliz, e ninguém mais para me ouvir, ninguém mais para me compreender. E então pensei tomar um duche, querido. Pensei. Mas tinha o teu cheiro em mim e isso estava bem assim. Deixei-me ficar com o teu cheiro."
João
Geografia das Curvas

09 novembro 2015

«Eternizar momentos» - João

"Às vezes fotografo mulheres nuas. É certo que na maioria das vezes que aponto a objectiva às mulheres, elas estão vestidas, mas às vezes, às vezes sim, elas estão nuas. E mesmo quando estão vestidas há sempre um certo grau de nudez, e talvez algumas se sintam mais despidas com roupa do que sem ela. Estimo que se franzam alguns sobrolhos quando pensam nisto de eu fotografar mulheres nuas. Talvez lhes fosse mais fácil se eu fosse ginecologista. Talvez sentissem que eu passar os meus dias com a cabeça enfiada entre tornozelos a observar vaginas em variados graus de deterioração fosse mais casto, mais útil, mais seguro. Mas isto de virar vidro, sensores digitais e o meu olhar a corpos femininos despidos, não, isso não pode ser coisa boa. Este palerma que faz geografia em curvas, que tem sempre uma piada pronta como malaguetas e uma mente muito imaginativa não pode, seguramente não pode, fotografar mulheres nuas e não fazer disso algum tipo de joguinho, de limpeza oftálmica, de alimento à fantasia. E no entanto, se assim pensarem, dir-vos-ei, não me conheceis mesmo nada e tomais-me por outra pessoa que não eu.
Talvez sentissem que eu passar os meus dias com a cabeça enfiada entre tornozelos a observar vaginas em variados graus de deterioração fosse mais casto, mais útil, mais seguro.
Às vezes fotografo mulheres nuas. Vieram depois de muitos, muitos anos com as paisagens que não se queixam e não mudam muito, vieram a seguir aos edifícios e depois a alguns retratos, e a dificuldade cresceu, a responsabilidade chamou, e o corpo feminino colocou-se perante mim assim, a jeito para pressionar um botão e fazer uso da luz. E quando toca a fazer uso da luz, quando toca a enfiar sensações, sentimentos, estados de alma num rectângulo que a câmara me desenha, a responsabilidade chega a ser esmagadora. E importa-me tão pouco se as mulheres que estão frente a mim estão nuas ou não. Não estou apaixonado por elas, não lhes desejo o corpo, nada quero delas que não o respeito mútuo e o esforço por um bom resultado, que a todos faça chegar ao final do dia e pensar que aquela fotografia vai perdurar, vai transmitir alguma coisa que vai tocar a alguém. Não lhes toco sequer, e se tiver de o fazer, é com permissão e com explicação prévia do que vou fazer e porque vou fazer. Quando nos colocamos perante uma objectiva, estamos vulneráveis. Julgamos controlar tudo – tudo! – mas temos perante nós alguém com o poder de nos fazer parecer bem, ou mal, e não temos tanto poder sobre isso quanto pensamos. Vendo bem, o meu lado, protegido atrás do anonimato de uma máquina pesada, é o mais fácil. Sendo difícil, porque me exijo uma perfeição que sei que me ilude, é ainda assim o mais fácil. E essas mulheres, essas mulheres que se colocam frente a mim, nos mais variados estados de nudez – um rosto destapado num corpo totalmente vestido pode ser tão mais despido! – são mulheres a quem agradeço, mulheres que respeito, e que eu espero que tenham sempre sentido isso da minha parte.

Às vezes fotografo mulheres nuas. Mesmo quando estão totalmente vestidas. Podia dizer-vos que é pela arte. Prefiro dizer-vos que é pelo eternizar de momentos, na colecção que todos fazemos, elas e eu, de algo que nos transcenda. E descobri, com o tempo, que a fotografia facilmente nos transcende. Como poucas coisas."

João
Geografia das Curvas