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Naqueles verões ensolarados, quando a morte invadia a vila, colava-se-nos aos corpos um apego compulsivo à vida. Com os passos acertados, subíamos sincopadamente os degraus de pedra negra, para ir tocar o sino que apregoava a todos os arredores a saída do cortejo fúnebre.
E até a procissão atingir o cruzeiro, a meio caminho entre a igreja e o cemitério, soltávamos a corda das mãos, para os seus dois braços me pregarem os ombros na parede escura, aninhando o seu esterno entre os meus seios e grudando os nossos lábios numa ânsia do fôlego do outro. Invariavelmente, eu remexia os seus longos cabelos à Jim Morrison e as nossas mãos retorciam-se entre o pano do vestido indiano e a ganga das calças, ao compasso do Time dançado na noite anterior na festa da garagem.
Ajoelhávamos à vez perante o outro, num misto de guloseima e pêlos a picar o nariz, mantendo a vigília sobre o andamento do cortejo que quando chegava a meio do percurso era hora de puxar das forças para fazer novamente soar o pesado badalo de bronze.
Cansados e húmidos do esforço espojávamo-nos no chão, alternando os actos missionários com galopes de valquíria, até avistarmos o padre na porta do cemitério para desenfreadamente voltarmos aos toques a rebate até a última pessoa franquear os portões escancarados. Era aí que saíamos da torre para mergulhar no açude, entre pedras, peixes e alfaiates que com menos de vinte anos a energia é elástica.
E sabes São, ainda hoje me questiono porque é que o padre era tão solícito a querer os nossos préstimos e a dar-nos a chave da torre sineira se nem costumávamos ajudar à missa.