Episódios anteriores.As noites claras (
I), (
II),
(III) e
(IV)por CharlieEntrou para o carro após ter apressado o passo numa quase corrida inconsciente que ela abrandou ao dar-se conta da mensagem que a sua pressa lhe poderia transmitir. Jamais deixaria passar-lhe a sensação de estar a sentir o fogo interior que a tomara desde esse instante na noite anterior, em que num redescobrir do mistério genuíno, ele lhe chegara ao pé, no Bar reservado da discoteca, e lhe oferecera uma bebida.
Há muito que não experimentara aquele formigueiro no estômago, aquele arrepiar de pele, subitamente recuperados dos anos doces da memória.
Agora que entrara no carro e se instalara delicadamente, fazendo o corpo deslizar sobre o tecido do banco, assentou. Levantou os olhos de expressão quase infantil e olhou para ele sem expor em demasia a sua verdade interior. Sorriu-lhe e cedeu, após uma pausa dramática simulando uma hesitação, ao beijo breve nos lábios que ele lhe ofereceu e que ela desejava intensamente.
Não podia estabelecer laços de afecto com os clientes neste viver que vivia paradoxalmente dos paradoxos dos afectos. Mas a verdade é que toda ela fervia por ele. Sentia o que há muitos anos deixara de experimentar. Verdadeiramente apaixonada.
Este homem, apenas mais um como ela fizera por pensar na noite anterior quando chegara a casa, mexera com o mais profundo que existe na alma humana. Franqueara fronteiras que ela de repente, ali sentada no carro, apesar de toda a sua experiência e postura interior, descobrira serem tão frágeis como no primeiro dia em que vira o sol nascer do lado contrário do mundo. A sensação eterna do primeiro beijo que se repete ao infinito quando os lábios tocam nos de quem de verdade se ama…
Sem saber porquê nem a que propósito, veio-lhe a imagem do seu avô à mente. Lembrava-se do dia em que ele morrera e da aflição da sua mãe a procurar em casa por todas as gavetas, colchões e tábuas de soalho, esconderijos onde pudessem estar escondidos maços de notas. Corria na Vila que ele, velho e avarento, tinha imenso dinheiro embora vivesse de forma parca e reservada. Em diversos lados encontrou notas em envelopes, mas procurava o que ela sabia existir em casa algures.
Sorriu com o reviver da imagem primeiro sorridente da sua mãe e depois de desconsolo quando, ao abrir a caixa finalmente encontrada sob um alçapão debaixo da mesa da cozinha disfarçado com uma carpete, repararam como uma fina camada de papel transformara uma fortuna num rendilhado, ora contínuo ora em peças soltas, obra prima dos ratos. Da caixa de dinheiro, apenas uma parte fora salva com idas ao Banco, diligências feitas junto ao gerente, muitas vezes repetidas, onde ela pela primeira vez descobrira ainda adolescente, a superior importância dum sorriso em contraponto às lágrimas com que a sua mãe lhe enchera o gabinete.
- Ai senhor Nunes. – Dissera chorando pela décima vez. - Se soubesse a falta que me faz esse dinheiro… Agora que ela vai daqui a um ano para Lisboa para os estudos na faculdade... Veja bem que estão aí as poupanças duma vida.-
Ele respondera-lhe – Minha Senhora, - Que tinha toda a razão. Mas que as notas já não corriam. Só no Banco de Portugal é que lhe poderiam trocar, além de que uma grande quantidade estaria irrecuperável por muitas peritagens que lhe fizessem. Poderiam salvar uma percentagem mas o que ali estava era, em boa quantidade quase apenas e só, pó de papel. Valera então nessa altura o olhar que ele pousara nas pernas de saia curta, demorando-se apenas um segundo, após o que subindo devagar pelo corpo e lhe colhera sorrisos e brilhos num rasgo de sonho efémero. Não compreendera muito bem na altura a sua mudança de atitude, subitamente mais prestável e solícito, assumindo as diligências necessárias para a recuperação das notas inutilizadas. Mas como ela agora via, vida de experiência feita e novamente de volta ao interior do Mercedes cor de prata, mais mexe com o mundo sonhar com o improvável tornado provável por uma hipótese remota ao alcance da mão que todos os oceanos de lágrimas chorados.
De repente, num gesto nervoso, voltou a pôr os óculos escuros. Numa atitude mal disfarçada de desconforto abaixou-se escondendo o rosto ao fingir procurar qualquer coisa dentro da mala. Ali mais à frente, à esquerda logo a seguir ao arco, um homem a olhar vaga e distraidamente para eles estava pondo a chave à porta, descansando os sacos que trazia no chão à entrada.
O carro passou lentamente deixando-o para trás.
Ela inspirou fundo, pousou a mala e encostou-se pondo-lhe a mão na perna. Mordeu-lhe levemente o ouvido e sussurrou:
- Querido... Apetece-me que me leves a almoçar ao Guincho…-