Farta de o ouvir, encaminhou-se para a porta da rua, abriu-a em silêncio e assim ficou, agarrada à maçaneta, olhando-o fixamente, tentando manter-se sem expressão, ordenando-lhe que saísse.
Ele que não parara de falar, de si, dela, de tudo e de nada, alimentando uma discussão que parecia ser a única coisa que os ligava, calou-se espantado. Olhou-a. Olhou o longo corredor escuro que dava acesso ao elevador e aos restantes apartamentos naquele piso e perguntou:
– O que é isso?
– Uma porta.
– Queres que me vá embora?
Ela ergueu as sobrancelhas:
– O que é que te parece?
– Assim?!
Ela baixou ostensivamente os olhos até aos sapatos dele e subiu lentamente até os olhos de ambos se tornarem a encontrar:
– Se foi assim que vieste, qual é a dúvida?
– Não estava a falar da roupa – disse ele, incomodado com a frieza e rigidez dela junto à porta.
Ela manteve-se calada.
– Queres que me vá embora? – repetiu ele, sem se mexer.
Ela acenou positivamente.
– Porquê? – inquiriu ele, iniciando a lenta caminhada até ela.
– Porque não?
Ele parou e olhou-a interrogativo, mas não recebeu qualquer sinal em resposta.
– É isso que queres? – e recomeçou a andar.
– Sim.
Ele aproximou-se dela e estendeu a cara na sua direcção, apontando a sua boca à boca dela. Ela hesitou, mas acabou por não dar o passo atrás, como o primeiro impulso quase a levara a fazer, e apenas virou a cara, dando a face para ser beijada.
Ele beijou-a e suspirou ruidosamente.
– Eu depois ligo-te – disse, saindo para o corredor.
– Escusas de ligar – informou-o. – Com licença – e fechou a porta suavemente ante a incomodada perplexidade dele.
Deixou-se ficar encostada à porta e ouviu-lhe os passos no corredor a afastarem-se, percebeu duas paragens mas nunca olhou pelo óculo da porta. Ouviu a porta do elevador fechar-se, desencostou-se da porta, deu cinco passos e encarou a sala vazia, mais vazia.
“E agora?” pensou. Sorriu com a pergunta, achou graça a que no fim de uma discussão, provavelmente, sem retorno, a primeira coisa que conscientemente pensasse fosse exactamente “E agora?” como se tivesse queimado o jantar e fosse imperioso arranjar uma solução imediata. Suspirou “Que estupidez”, mas não fechou o sorriso.
Procurou o maço de tabaco e encaminhou-se para a varanda, sentindo-se estranhamente satisfeita, absurdamente limpa e leve. Ouviu o telemóvel tocar mas decidiu não atender, nem sequer ver quem era. Encostou a porta da varanda, sentou-se na cadeira plástica e fumou olhando as janelas do prédio em frente.
“Quantas pessoas estarão agora a fazer amor? Quantas estarão a discutir? Quantas estarão a vegetar em frente ao televisor?”, conjecturou contemplando demoradamente os apartamentos que entrevia através das janelas. “Estou a ficar velha”, acendeu outro cigarro, “ou, se calhar, mais esperta”, olhou para o relógio com satisfação e, ainda que não o pensasse de forma consciente (não precisava), decidiu sair, ir às compras, ver montras, ver pessoas e caminhar.
Apagou o cigarro, ainda a meio, e reentrou em casa. O telemóvel tocava. Respirou fundo e, contrariada, dirigiu-se, de sobrolho franzido, ao braço do sofá, onde o tinha abandonado. Olhou o mostrador, “Provavelmente, isto já não se chama um mostrador”, pensou e leu o nome dele. Atendeu.
– O que foi?! – disparou.
Ele hesitou (as hesitações dele enfureciam-na), começou três frases, que ela não percebeu e, por fim, pediu:
– Desculpa.
– Porquê? – perguntou ela, furiosa. Desculpas era a última coisa que queria ouvir. – Por seres quem és?!
– O quê?
– Está a pedir-me desculpa, porquê? – insistiu com maus modos. – Partiste alguma coisa, foi?
Surpreendido, ele não respondeu.
– Partiste alguma coisa?! – repetiu ela.
– Não – disse ele.
– Fizeste chichi no elevador? – perguntou ela.
Ficaram ambos estupefactos quando ouviram a pergunta mas só ele verbalizou a surpresa:
– O quê?!
Ela, ainda espantada com o que perguntara, imaginou-o de olhos esbugalhados e olhar perdido, boca aberta e sobrancelhas em meia lua quase a tocarem a franja e abafou um risinho de gozo. Gostara da frase, ainda que não compreendesse porque a dissera.
– Estás pedir desculpa, porquê? – retomou a conversa antes do chichi, mas imaginava-o agora a abrir a braguilha, a parar o elevador e a urinar furtivamente com um sorriso demoníaco.
– Porquê? – repetiu ele.
– Sim, estás a pedir desculpa porquê?
Ele sentiu o porquê como um monte de entulho impossível de ultrapassar sem se magoar, sem se sujar, sem se comprometer. Na verdade, ele por mais que se esforçasse, e estava a esforçar-se muito, não sabia porque tinha pedido desculpa, ou melhor, sabia, mas não o podia dizer. Não pedira desculpa por nada, julgara apenas que fosse uma boa forma de iniciar a conversa. Normalmente resultava.
– Porque é que havia de fazer chichi no elevador? – disfarçou.
– Sei lá – ela não conteve uma gargalhada. – Podias ter vontade.
– E achas que ia mijar – ambos estranharam que ele usasse esta palavra – no elevador?
– Podia ser uma afirmação!
– Urinar no elevador…
– No meu elevador.
– Urinar no teu elevador era uma afirmação?
Ela olhou-se ao espelho. Sorria e os olhos brilhavam-lhe. “E agora?” lembrou-se, sem mudar de semblante.
– Urinar, não – declarou. – Mijar, sim. Dava a ideia que te tinhas descontrolado, que tinhas sido realmente afectado pela nossa discussão… que tinhas sido abalado por eu te pôr na rua – corrigiu.
– Estou a ligar-te, não estou?
– E depois? – A imagem do espelho tinha perdido o sorriso e os olhos já não brilhavam. – Estás a ligar-me, pois estás, mas ainda não me disseste nada – o tom endureceu e ela afastou-se do espelho quando se apercebeu da ruga vincada que lhe dividia a testa. Tornou a olhar para os prédios em frente. “Quantas pessoas estarão a fazer amor neste momento?” – Há quanto tempo não fazemos amor? – perguntou de chofre.
– Há…
– Não digas – interrompeu ela, arrependida de ter feito a pergunta –, não interessa. Não interessa nada – concluiu em voz sumida.
– Fizemos ontem – disse ele em tom informativo, neutro. “No mesmo tom com que fizemos amor”, foi abalado por este pensamento e calou-se, evitando o risco de descobrir mais qualquer coisa se continuasse a falar.
Ela voltara a pegar no maço de tabaco e regressara, ainda com o telemóvel junto ao ouvido, à varanda. Inconscientemente procurou descobrir o automóvel dele e viu-o, encostado ao carro, de cabeça baixa, olhando para o telemóvel.
– Está – disse para perceber se ele ainda a estava a ouvir.
– Sim, estou – ouviu-o dizer entre os barulhos da rua. Tinha o telemóvel no altifalante.
– O que foi? – ouviu-se perguntar em tom genuinamente curioso.
– Posso subir?
– Subir?
– Sim, posso ir aí?
Ela viu-o levantar os olhos para a varanda e levar o telemóvel até ao ouvido. Hesitou. Olhou as janelas do prédio em frente e apagou o cigarro, onde dera apenas duas passas, informando-o, lacónica:
– A porta está aberta.
Desligou o telemóvel, viu-o descolar-se do carro e foi abrir o trinco da porta do prédio e a porta de casa, que deixou encostada. Olhou para o sofá, mas decidiu retornar à varanda, onde se sentou de costas para a sala observando as janelas do prédio em frente.
27 outubro 2007
Vivam os artistas dos WC
Não sei se ainda por lá está, mas fica aqui para a idade do poster* esta bela cona pintada na
porta de um WC
do Teatro Académico Gil Vicente,
em Coimbra - Junho de 2002
* sim, sim, posteridade
porta de um WC
do Teatro Académico Gil Vicente,
em Coimbra - Junho de 2002
* sim, sim, posteridade
26 outubro 2007
Dois excelentes livros de Alfred Delvau para a minha colecção
Alfred Delvau foi um jornalista e escritor francês que viveu entre 1825 e 1867.
Uma das suas obras foi o «Dictionnaire érotique moderne», editado pela primeira vez em 1864. Este dicionário erótico, cujo conteúdo continua moderno, foi reeditado numa edição de luxo com tiragem reduzida, de 1960, de que comprei o exemplar nº 161.
«Dictionnaire érotique moderne»
Um exemplo de uma definição:
Araignée (faire patte d') - action de prendre les couilles et le vit de l'homme de manière à chatouiller le tout à la fois en allant de la tête du vit au périnée et au trou du cul, de haut en bas, à droite et à gauche et retour, en y joignant des coups de langue au filet du vit decalotté, le tout jusqu'à la jouissance complète.
[Aranha (fazer as patas de uma] - acção de agarrar os colhões e o caralho do homem de maneira a estimular tudo ao mesmo tempo indo da cabeça do caralho até ao períneo e ao buraco do cu, de alto a baixo, à direita e à esquerda e regresso, juntando-lhe uns toques de língua no freio do caralho com o prepúcio puxado, tudo até ao gozo completo]
Além das definições de palavras e frases usadas «às escondidas» (tal como nos dias de hoje), Delvau apresenta excertos de obras onde essas palavras e frases são usadas. Por exemplo, para ilustrar o amor, apresenta este poema de Paul Saunière:
De son vit couturé de chancreuses ornières,
Pénétrer, chancelant, au fond d'un con baveux,
Mettre en contact puant les canaux urinaires
De scrofules pourris nous créer des neveux,
De spermes combinés faire un hideux fromage,
Au fond de la cuvette, humide carrefour
En atomes gluants voir le foutre qui nage...
Voilà l'amour!
[Com o seu caralho marcado com sulcos cancerosos,
Penetrar, vacilante, no fundo de uma cona babosa,
Pôr em contacto fétido os canais urinários
De escrófula apodrecidos criar-nos descendentes,
De espermas combinados fazer um queijo repugnante,
No fundo da bacia, húmida encruzilhada
Em átomos peganhentos ver a esporra que nada...
É isso o amor!]
Ilustração para a letra T
Entretanto, comprei também a edição de 2005, desta vez ilustrada por Sergio Aquindo.
capa do «Lexique Érotique Illustré», de 2005, com ilustrações
do desenhador argentino Sergio Aquindo
Ilustração de Sergio Aquindo para a letra Q
Ilustração de Sergio Aquindo
«Dictionnaire érotique moderne» - versão digitalizada em BnF
Uma das suas obras foi o «Dictionnaire érotique moderne», editado pela primeira vez em 1864. Este dicionário erótico, cujo conteúdo continua moderno, foi reeditado numa edição de luxo com tiragem reduzida, de 1960, de que comprei o exemplar nº 161.
«Dictionnaire érotique moderne»
Um exemplo de uma definição:
Araignée (faire patte d') - action de prendre les couilles et le vit de l'homme de manière à chatouiller le tout à la fois en allant de la tête du vit au périnée et au trou du cul, de haut en bas, à droite et à gauche et retour, en y joignant des coups de langue au filet du vit decalotté, le tout jusqu'à la jouissance complète.
[Aranha (fazer as patas de uma] - acção de agarrar os colhões e o caralho do homem de maneira a estimular tudo ao mesmo tempo indo da cabeça do caralho até ao períneo e ao buraco do cu, de alto a baixo, à direita e à esquerda e regresso, juntando-lhe uns toques de língua no freio do caralho com o prepúcio puxado, tudo até ao gozo completo]
Além das definições de palavras e frases usadas «às escondidas» (tal como nos dias de hoje), Delvau apresenta excertos de obras onde essas palavras e frases são usadas. Por exemplo, para ilustrar o amor, apresenta este poema de Paul Saunière:
Pénétrer, chancelant, au fond d'un con baveux,
Mettre en contact puant les canaux urinaires
De scrofules pourris nous créer des neveux,
De spermes combinés faire un hideux fromage,
Au fond de la cuvette, humide carrefour
En atomes gluants voir le foutre qui nage...
Voilà l'amour!
[Com o seu caralho marcado com sulcos cancerosos,
Penetrar, vacilante, no fundo de uma cona babosa,
Pôr em contacto fétido os canais urinários
De escrófula apodrecidos criar-nos descendentes,
De espermas combinados fazer um queijo repugnante,
No fundo da bacia, húmida encruzilhada
Em átomos peganhentos ver a esporra que nada...
É isso o amor!]
Ilustração para a letra T
Entretanto, comprei também a edição de 2005, desta vez ilustrada por Sergio Aquindo.
capa do «Lexique Érotique Illustré», de 2005, com ilustrações
do desenhador argentino Sergio Aquindo
Ilustração de Sergio Aquindo para a letra Q
Ilustração de Sergio Aquindo
«Dictionnaire érotique moderne» - versão digitalizada em BnF
25 outubro 2007
Asa esquerda e asa direita, disseste tu. E eu repito-te. Como se me forçasse a acreditar que só assim se faz o voo.
Rio-me. Digo-te que preciso da tua asa direita para equilibrar a minha asa esquerda, como se precisa da fealdade para realçar a beleza.
Porém, não era preciso que me risse. A tua asa direita chega-se a mim e envolve-se na minha asa esquerda; a minha asa esquerda chega de mansinho e insinua-se na tua asa direita.
Podemos então rir os dois das caras de espanto com que nos olham os que não percebem como equilibramos este voo.
E é para a cama onde nos deitamos que levamos as diferenças e as semelhanças e dela, dessa cama que é a nossa, fazemos uma casa.
"São asas. Que só duas fazem voo."
Calor... frio...
Um casal de reformados vai ao médico fazer o seu exame periódico. Depois de tê-lo examinado, o médico diz ao velho:
- O senhor está com uma saúde excelente! O senhor tem algo em especial que gostasse de discutir comigo?
- De facto tenho! Depois de fazer sexo com a minha mulher, na primeira vez, eu sinto muito calor e fico todo suado, mas na segunda vez eu sinto muito frio e tremo todo!
- Interessante! Vou anotar isso e depois dou-lhe um parecer.
O médico examina a mulher e no final diz-lhe:
- A sua saúde está excelente! A senhora tem algo em especial que gostasse de discutir comigo?
Ela responde que não. O médico então acrescenta:
- O seu marido veio com um problema estranho. Ele disse que a primeira vez que faz sexo com a senhora, ele sente calor e sua muito. E que na segunda vez ele sente frio e treme. A senhora imagina o que possa ser?
- Ah, é lógico! A primeira vez é em Julho e a segunda é em Dezembro!
(enviado por TamTam para o grupo de mensagens da funda São - já te inscreveste?)
- O senhor está com uma saúde excelente! O senhor tem algo em especial que gostasse de discutir comigo?
- De facto tenho! Depois de fazer sexo com a minha mulher, na primeira vez, eu sinto muito calor e fico todo suado, mas na segunda vez eu sinto muito frio e tremo todo!
- Interessante! Vou anotar isso e depois dou-lhe um parecer.
O médico examina a mulher e no final diz-lhe:
- A sua saúde está excelente! A senhora tem algo em especial que gostasse de discutir comigo?
Ela responde que não. O médico então acrescenta:
- O seu marido veio com um problema estranho. Ele disse que a primeira vez que faz sexo com a senhora, ele sente calor e sua muito. E que na segunda vez ele sente frio e treme. A senhora imagina o que possa ser?
- Ah, é lógico! A primeira vez é em Julho e a segunda é em Dezembro!
(enviado por TamTam para o grupo de mensagens da funda São - já te inscreveste?)
24 outubro 2007
Em caracolafilia
Não o posso esmifrar no meio do grupo que ainda tenho um niquito de sentido das conveniências e não vou pular por cima das travessas de caracóis e com risco de derrubar as muitas canecas expostas para lhe saltar para o colo e aterrar as minhas nádegas nas suas coxas, umbigo contra umbigo, para lhe chupar aqueles lábios húmidos como se faz ao molho nas cascas e me apetece, mas torno óbvio que ando a catrapiscá-lo.
Acendo-lhe o cigarro e faço concha nas suas mãos. Com a cumplicidade espetada no sorriso chego-lhe mais um alfinete para que nada lhe falte para poder picar. Antecipo-me a pedir mais cerveja incluindo-o logo com a justificação de que importa ter a língua molhada e até lhe empurro o molho picante para o caso de querer dar um ar exótico ao petisco.
O molho que me delicia é descobrir nele alguém a quem os anos não embaciaram o brilho maroto de quem em criança partia pratos com pressão de ar ou encardia os calções a rolar pela terra. E tal como os garotos se pelam por isso, alegra-se no convívio com os amigos acreditando que o melhor que de si pode dar aos outros são as suas ideias e o seu carinho. E até os seus caracóis rebeldes são afinidade que me transporta a um tempo em que uns azulejos azuis setecentistas nas paredes e um piano na sala davam o cenário de conto de fadas ao mundo em que me sentia uma princesa.
Se recordar é viver também só sentimos falta daquilo que conhecemos pelo que se ele volta a passar o polegar pelo canto dos meus lábios para limpar a espuma, faço dele prato principal.
Acendo-lhe o cigarro e faço concha nas suas mãos. Com a cumplicidade espetada no sorriso chego-lhe mais um alfinete para que nada lhe falte para poder picar. Antecipo-me a pedir mais cerveja incluindo-o logo com a justificação de que importa ter a língua molhada e até lhe empurro o molho picante para o caso de querer dar um ar exótico ao petisco.
O molho que me delicia é descobrir nele alguém a quem os anos não embaciaram o brilho maroto de quem em criança partia pratos com pressão de ar ou encardia os calções a rolar pela terra. E tal como os garotos se pelam por isso, alegra-se no convívio com os amigos acreditando que o melhor que de si pode dar aos outros são as suas ideias e o seu carinho. E até os seus caracóis rebeldes são afinidade que me transporta a um tempo em que uns azulejos azuis setecentistas nas paredes e um piano na sala davam o cenário de conto de fadas ao mundo em que me sentia uma princesa.
Se recordar é viver também só sentimos falta daquilo que conhecemos pelo que se ele volta a passar o polegar pelo canto dos meus lábios para limpar a espuma, faço dele prato principal.
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