A função decorria normalmente, com um pouco de gel lubrificante dada a ausência de preliminares e desenvolvia-se agora num modorrento e pastelão entra e sai que era mais uma espécie de obrigação conjugal do que um acto desejado, quando ele, como se a conversa já estivesse a decorrer ou, pelo menos, como se não o estivessem a fazer, continuou – que é a palavra certa, porque a forma como ele o disse dava a entender um diálogo prévio que, no entanto, apenas ele tinha ouvido:
– E eu acho que nos falta qualquer coisa.
Satisfeita com a interrupção – o gel tinha sido pouco e o dia longo – ela não fez qualquer menção à estranheza da situação e apenas perguntou:
– O quê?
– Não sei – respondeu o homem de imediato.
Ele, sem pensar nem julgar, sentiu-lhe o movimento das ancas propondo o afastamento, e retirou-se completamente de dentro dela, erguendo-se nos braços e nas pontas dos pés.
– Mas qualquer coisa de quê? – insistiu ela, em tom quase simpático.
Ele hesitou, afinal não se tinha vindo, que era o seu principal, senão único, móbil para a função mas prescindiu sem custo da triste descarga e concentrou-se na resposta que queria dar.
– Não sei – ouviu-se repetir.
Ela olhou-o, sentiu o peso afastar-se e, por uma vez, decidiu dar-lhe tempo para se justificar.
– Acho que nos falta qualquer coisa – recomeçou ele. – Que o acto de fazermos amor… Nem sei se ainda lhe chame assim…
– Fazermos amor?
– Sim.
– Como é que lhe querias chamar?
– Não sei mas não me parece que isto que ultimamente fazemos seja fazer amor.
– Débito conjugal? – propôs ela, legalista.
– Débito conjugal – repetiu ele, deixando escapar um risinho envergonhado e fraco. – É capaz de ser mais isso.
– Mas não queres fazer?
Era notório que não queria. Que não queriam.
– Quero, claro que quero – respondeu ele, diplomaticamente mas sem conseguir dar qualquer inflexão de verosimilhança à voz.
Ela ouviu-o e concluiu que, se ele ainda estivesse encima dela, lhe tinha dado uma joelhada nos testículos cheios. Nada diplomática, é certo, mas bem mais honesta que a resposta dele. Feliz pela impossibilidade da joelhada e por se ter lembrado dela, ela imaginou-o aos gritos a contorcer-se com dores e sorriu, diluindo o “quero, claro que quero” na vasilha das bem intencionadas mas completamente falhadas respostas masculinas.
– Não digas isso… – A voz saia-lhe doce, compreensiva, ainda que ela não percebesse porquê. – Não queres, pois não?
– Assim não – confirmou ele, depois de uma pausa. – É tudo demasiado mecânico. É como se estivéssemos a cumprir uma obrigação.
– E não estamos? – troçou a mulher com um sorriso breve. – Afinal, não estamos casados?
Ele ajeitou-se na cama, com um grunhido desaprovador.
Ela respondeu à sua própria pergunta:
– O débito conjugal é um dos deveres dos cônjuges, integra-se no dever de coabitação, legalmente previsto no artigo…
– Não me vais dar uma lição de direito, pois não? – interrompeu ele.
– Não – respondeu ela, contrariada: estava a gostar de se ouvir falar. – Mas não é por eu me calar que deixa de ser menos verdade – rematou acintosamente.
– Talvez.
– E não é um simples dever – recomeçou ela.
– Não?
– É um dever e um direito – declarou a mulher, panfletária. – Todos os cônjuges, homens ou mulheres, têm direito ao prazer sexual!
– Acho que a ideia do legislador ao aprovar o Código Civil não era bem essa – replicou o homem.
– Claro que não era – reconheceu ela, de pronto. – Mas isso agora não interessa nada, meu caro, os tempos são outros e o débito conjugal tanto é um direito que nos assiste como um dever que temos de cumprir.
– Visto assim…
Ela ergueu as sobrancelhas e permitiu-se sorrir, feliz com a encolhida concordância dele.
– Visto assim até parece uma coisa boa! – concluiu ele, mostrando-lhe a língua.
A mulher emparedou o sorriso com um ar sentido e grave, semicerrou as pálpebras, fixou-o com o mesmo ar decidido e frio com que normalmente fixava os arguidos na sala de audiências e perguntou:
– Essa língua de fora é um convite ou uma participação de algo que me vais fazer?
Os olhos dele não esconderam um sorriso brilhante, a cara sim.
– Por momentos, parecia que me ias condenar – disse ele, sem lhe responder. – Que ar tão sério. – E condeno-te – aproveitou ela –, condeno-te a usares a língua para cumprimento dos teus deveres conjugais, para satisfação integral do teu dever de coabitação e para a execução imediata da pena conjugal a que te condenaste quando casaste comigo.
– Sim, Meritíssima – anuiu ele, num sussurro, lambendo-a lentamente a caminho do local do cumprimento da pena.