– E quando me quiseres mandar passear, manda – afirmou o homem, teatralmente sério, pousando a chávena de café. – Não me sugiras passeios.
– Desculpa?
– Porque é que percebes tão bem umas coisas e outras não? – questionou ele após uma curta pausa, franzindo as sobrancelhas e cerrando os lábios, no fim.
Ela constatou em silêncio mas com ar trocista o cerrar dos lábios e o obtuso movimento dos apêndices pilosos, esperou que estes aquietassem e perguntou com ar desafiador:
– Estás a falar de quê?
– Se queres saber – começou ele, hesitante, com a expressão mudada, comprometida. Ela percebeu a mudança e acenou positivamente com a cabeça. Ele completou de um fôlego: – Se queres saber, não sei o que temos e não sei se quero ter o que temos.
A mulher contraiu os seus lábios finos, exageradamente vermelhos, passou a mão pelo cabelo, demasiadamente liso, e, num tom especialmente meloso, declarou:
– Não estou a perceber, Luís. – Ela mantinha os cantos da boca descaídos mas os olhos sorriam maliciosamente, distraindo-o. – Não sabes o que temos?
Ele anuiu com um movimento subtil da cabeça. Ela continuou:
– Não sabes se queres ter o que não sabes que temos?
Ele repetiu a ratificadora cabeçada. Ela continuou:
– Ou não sabes se queres ter o que não sabes se temos?
O homem ponderou a pergunta, sem cabeçadas nem movimentos de apêndices pilosos ainda que não se sentisse nada confortável, e esclareceu, sem certezas:
– Não sei se quero ter o que não sei que temos – rodou a chávena do café e concluiu: – porque temos alguma coisa, isso é certo… O se… O se temos… – gaguejou, calou-se e, após mais uma volta da chávena sobre o pires, acabou por reformular a frase dizendo-a como se encontrasse a fórmula correcta: – Não sei se quero ter o que temos, que eu, de qualquer forma, não sei o que é.
Ela olhou-o com o mesmo brilho trocista nos olhos e agora um trejeito quase sorridente nos lábios e, aveludando a voz, perguntou:
– E o que tem isso que ver com eu te mandar passear em vez de te sugerir passeios?
Ele tossiu, repetiu os estafados movimentos das sobrancelhas, que acompanhou com um hesitante encolher de ombros e, antes que a chávena enjoasse com mais uma volta sobre si própria, a mulher, sem levantar o volume ou alterar o tom, avançou:
– Não me queres comer, é?
Surpreendido com o modo e o tom da pergunta, o homem a quem ela chamava Luís engasgou-se na sua própria tosse.
Ela insistiu:
– Já não me queres comer?
Disse-o a sorrir mas ele não via, nem queria. De cabeça baixa, imaginava-lhe os olhos verdes, brilhantes, troçando ternamente de si, picando-o, convidando-o…
– Quero – disse o homem, levantando a cabeça.
Ela olhava-o, agora sem expressão definida, de olhos postos nos dele.
– Eu pensava que era isso mesmo que tínhamos… Que temos – corrigiu. – Julgava que era isso que nos ligava…
– Eu querer-te comer? – Interrompeu ele, pouco à vontade com a crueza da expressão.
Ela riu, gozando com o seu atabalhoamento, e atacou:
– Tu quereres comer-me?! Não! Nós querermos comer-nos.
– Ah!
– Mas porque julgam os homens que a antropofagia sexual é um exclusivo masculino?
– Desculpa?
– Sim, vocês continuam a julgar que são os machos dominantes, que são caçadores e que nós somos as presas… Ah!... Haviam de ter sido bons tempos… Pelo menos, para vocês. Era tudo muito mais simples, admito…
– O que raio é a antropofagia sexual?
– Ainda estás aí?
– Desculpa?
– Ainda estás a pensar no que é a antropofagia sexual?
– Sim, estou… É a vontade de nos comermos uns aos outros?
– Uns aos outros?!... – Ela olhou-o com uma careta. – Hum… Não sei porquê mas isso não me soou muito bem. Tu queres comer outros?
– Outras! Eu não quero comer outros, eu quero comer outras!
– Outras?! Porquê eu não te chego?
– Não é isso! – reclamou ele, com ar pomposamente ofendido.
– Não, então é o quê?
Ele arrastou um “Ah!...” como se tivesse sido apanhado de surpresa, abriu um sorriso e esperou que ela dissesse alguma coisa. Ela, que sabia que os silêncios o aborreciam, levantou as sobrancelhas, olhou-o com cara de caso e esperou pela resposta dele.
Ele engoliu em seco, sem saber o que dizer.
Ela insistiu:
– Afinal, eu chego-te ou não?
– Chegas – anuiu ele. – Não só me chegas como me ultrapassas.
– Queres dizer, então, que não queres comer outras?
– Não.
– Não queres dizer ou não queres comer?
– Não quero comer.
– E a mim?
– Quero.
– Eu chego-te?
– Bates-me?
– Se quiseres…
– Estava a brincar.
– É pena…
– O quê?
– Nada… Dizes tu que eu te chego? – Ele concordou. – E que, afinal, apesar de não saberes o que temos e de não saberes se queres ter o que nem sabes que temos me queres comer… – Ela chegou ao fim da frase quase cansada e resumiu: – No meio dessa tua complicação, o que sabes é que me queres comer.
– Sim, quero.
– A mim e à tua mulher.
– À minha mulher?
– Sim, não a andas a comer… Não a andas, legitimamente, a comer?
– Raramente.
Ela olhou-o, franziu o nariz, abanou a cabeça e disse:
– Não vamos por aí.
Ele anuiu em silêncio, com uma careta.
– E afinal – recomeçou ela –, não percebi, no meio disto tudo e ao mesmo tempo, queres que te mande passear?
– Sim.
– Queres?!
– Não.
– Não?! Ainda agora disseste que sim… Queres ou não?
– Acho que devia querer. Queria querer que sim…
– Querias querer querer que eu te quisesse mandar passear?
– Não, queria só querer que me mandasses passear.
– Mas não queres?
– Quero querer mas não consigo querer… Não, não quero.
– Porquê?
Ele encolheu os ombros, deixou que lhe surgisse um sorriso interesseiro e um brilho no olhar e declarou, baixando os olhos:
– Gosto dos teus seios.
– Mamas – retorquiu ela depois de franzir o sobrolho, com um sorriso. – Mamas.
Ele levantou os olhos e gostou do sorriso.
– Mamo.
Ela riu. Ele coçou a bochecha direita. Ela riu mais.
– Não é isso – esclareceu. – Mamas – repetiu entre gargalhadas.
– É isso – respondeu ele. – Gosto das tuas mamas.
– Das duas?
– Nunca tinha pensado nisso – disse ele, depois de uma pausa que repetiu, como se pensasse nos assuntos. – Acho que sim… Sim, gosto das duas por igual – respondeu cheio de certeza.
– E de mim?
– De ti?
– Sim, de mim, a portadora das mamas. Gostas?
– Muito.
– Parece que cresceste – comentou ela, sarcástica.
– Que cresci?
– Sim – disse ela enquanto dizia que não com a cabeça. – Ainda agora parecias um miúdo, um miúdo complicado, cheio de incertezas, sem saberes o que querias ou o que deixavas de querer… Um adolescente cheio de dúvidas e remorsos, que queria querer que eu o quisesse mandar passear e, de repente, olhas-me para as mamas e, como por magia, estás um homem feito.
Ele encaixou as palavras dela sem pestanejar, aceitou-as com um sorriso e declarou a sua concordância muda com movimentos ascendentes das sobrancelhas. Pousou duas moedas em cima da mesa para pagar os cafés. Levantou-se, estendeu-lhe a mão, que ela agarrou, e, de mãos dadas, seguiram em passo decidido e determinado.