07 janeiro 2010
O Amigo Oculto
– O quê? – inquiriu ela, terminando de lhe prender o pé direito à cama, sem lhe prestar atenção.
– Como no filme… – gracejou ele. – Não me dizes que és a minha fã número 1?
Ela olhou-o, pensativa, decifrando a referência cinéfila, ajeitou cuidadosamente o gorro de Pai Natal, depois verificou se os pés dele estavam bem presos e, por fim, sorriu. Olhou-o e sorriu, reconhecendo o filme.
– Para isso – disse ela, segurando-lhe o dedo grande do pé direito, que apertou –, tinha de ir buscar um martelo. – Piscou-lhe o olho, fechando o sorriso. – Não era?
– Um martelo?! – repetiu ele, engolindo em seco, esquecido desse desenvolvimento. – Não, não é preciso nenhum martelo – conseguiu dizer. – Não precisamos de seguir o filme… Aliás, isto não tem nada… Não, não é preciso martelo nenhum – insistiu ele, sem conseguir ligar as frases, que lhe saíam em golfadas descontroladas, enquanto procurava disfarçar os repelões às algemas que o prendiam à cama. – Não é preciso!
– Venho já – anunciou a mulher, tornando a piscar-lhe o olho agora com um sorriso enigmático e nada auspicioso. – Já viste que és um xis? – perguntou ao sair.
Aflito, o homem intensificou, sem qualquer método ou atenção, os movimentos dos braços e das pernas para se tentar soltar das algemas revestidas com pêlo cor-de-rosa que lhe prendiam os pulsos à cama e dos macios cordões que lhe manietavam os pés, enquanto se consumia de arrependimento de ter ido ao jantar de Natal do escritório, de ter oferecido as algemas de sex-shop no amigo oculto que, no caso, pelas regras dos jantares, sempre iriam para uma colega e de, no fim, já com o álcool a falar por ele, se ter oferecido de forma patética para as experimentar.
– Um xis… – mastigou, entaramelando as palavras. – Sou um x na cama e não me sentiria melhor se fosse outra letra qualquer. – Riu-se. – Podia ser pior… – continuava a falar sozinho. – Era muito pior…
– Então? – perguntou a mulher, que reentrara no quarto, toda nua só com o gorro e com o braço direito atrás das costas.
O homem deu uma gargalhada mais nervosa que satisfeita:
– Podia ser um xis e estar virado para baixo.
Ela sorriu, erguendo as sobrancelhas concordante.
– Trago-te aqui uma surpresa – disse, mostrando-lhe o cotovelo dobrado para trás das costas.
Ele ficou branco e olhou-a num silêncio sepulcral, as sinapses que o ligavam ao martelo já se tinham diluído no álcool mas, em seu lugar, aparecera uma máquina fotográfica ou um telemóvel para o fotografar ou filmar, o que lhe aumentara a sensação de trágica impotência e terror catastrófico.
– Hei! – gritou ela, voluntariamente encurtando o suspense. – É a tua prenda de Natal! – E mostrou-lhe uma venda para os olhos e um espanador. – Não embrulhei porque não conseguirias desembrulhar…
Aliviado, o homem riu.
Ela aproximou-se e colocou-lhe a venda. Desceu com o espanador lentamente da cabeça aos pés, agarrou com a mão livre o telemóvel que estava no chão, desejou-lhe
– Feliz Natal!
E reiniciou o laborioso trabalho com o espanador.
Elevador
Entrei eu.
Encostei-me o melhor possível,
para que a porta não me levasse
algum bocado de mim
(que poderia fazer muita falta).
Eu sairia no último andar
e tu também - pelos vistos -,
tudo se passou em segundos:
um apalpão aqui, outro ali,
mutuamente passámos a viagem
aos apalpões.
Sem uma palavra.
Pena que o prédio não tivesse mais andares...
Saímos – cada um para seu lado -
que acabou por ser o mesmo:
na empresa apresentaram-me o novo chefe.
O apalpador apalpado!
Foto e poesia de Paula Raposo
Então...
que eu perdi-me no tema,
sopra calor no meu peito
sopra-me alma de volta,
enrola-me nesse poema
que me sai das mãos de leito,
e então dorme, dorme
que a areia iluminada
pela lua não tem nome
e a nossa noite é muda,
se naufragar a nossa fome
nas mãos da madrugada;
Agora grita, grita
cada vez mais longe,
já nem te ouço o nada;
corre que a areia foge,
camada após camada
enterra o dia de hoje...
06 janeiro 2010
Todos aos vossos barcos que estou a molhar tudinho!
Eu sou tão tímida (e nem me ando a tratar) mas lá respondi ao que me perguntaram.
webzine Muro #4
São (sou eu) cinco páginas (da 24 à 28)
Ide lá, ide... e até vos podeis multiplicar...
Mais adiante, mais acima
Caminha pela glória total e nada menos exijas do que o estatuto de ganhador, sempre que esteja em causa um amor.
Caminha sem olhares o chão que cada pé pisar, aproveita.
Em cada paixão existe uma fórmula secreta que te ensina a voar.
dança-me comigo
Piano nu
o sono a pesar nos dedos,
os dedos sabem segredos,
confessam-se nas teclas do piano;
Os dedos desamparados nas teclas
as teclas desamparadas nos dedos
no piano transpiraram segredos
os dedos sabem-lhe a promessas;
O piano de língua pautada,
os dedos molhados do piano,
tocado a nu como um profano,
nua tocava a pianista sentada.
Casal de anjos-demónios
05 janeiro 2010
Livro de Eros (fragmentos)
A morte não existe.
Tudo é sexo e canto.
14
O sexo é um festim; amar, uma cerimónia.
48
— Tenho um colchão novo e anseio prová-lo dançando contigo nesse chão. Abri uma garrafa de um Porto de 1988 e vou bebê-lo em dois copos pensando que o bebes comigo. Tenho frio. E bem sabes que só me aqueço quando te aqueço e só ardo quando te amo.
- Quando me meto na cama busco o ninho, onde estás? e não posso aconchegar-me se não em ti. Não te encontrar é encontrar apenas o corpo do frio. Beberei contigo esse Porto. Eis os copos, vou beber pelos dois. Depois falaremos cantaremos dançaremos foderemos quando os eflúvios se transformarem em presença real.
316
Talvez consigas não te perder quando vês os lábios secretos de uma mulher: um labirinto, e tanta profusão! Mas uma vez lá dentro o mistério é ainda maior, mas cola-se ao teu, e então tudo é possível, até a morte. A morte verdadeira de quem acaba de renascer, uma e outra vez.
329
Escuto no corpo, no sexo das mulheres que amo, a música maternal. O começo do meu nome, do meu próprio corpo. Que são vários ou este apenas, muito e múltiplo. Talvez não busque nas mulheres que amo o mito da mulher original — o meu silêncio antes de nascer, o meu rosto anterior ao meu nascimento — talvez busque a fonte feminina, a dos mitos, que em mim também prolifera.
Cento e sessenta continhos, Ruth?
Ando a profetizar o fim da Playboy portuguesa desde há vários meses, embora tenha tido esperança aqui e ali. Considerando que a revista não tem, sequer, um ano completo, isto significa que edição após edição é mais acentuada a vertigem da Playboy do que a de quem observe a Torre de Pisa. Não sou insensível, sofro de forma solidária com a alcateia, sinto em mim o pulsar do desespero masculino, assim como senti o arrepio imenso da capa de Dezembro quando todos esperávamos uma gaja (pela amostra anterior já nem a esperavamos mesmo boa, só gaja já era bom) e nos entrou pela retina dentro o Ricardo Araújo Pereira. Não desfazendo. Mas para quem os tem no lugar, não é o que se pretende.
Quando se pensava que era impossível tombar mais, e ainda a colocar gelo para aliviar a dôr, eis que a Playboy tropeça e nos apresenta Ruth Marlene e sua irmã. Isto devia ser bom, porque depois do Ricardo em Dezembro estavamos finalmente de volta às mulheres, e porque até são duas, e não se pode dizer que sejam más figuras à primeira vista, mas há coisas que me ficam a fazer uma certa comichão e temo começar o ano com uma conjuntivite. Por um lado surpreende-me que o cachet seja de oitocentos euros. Se ignorarmos as flutuações no valor do dinheiro e nos apetecer fazer, assim de rajada, uma tradução curta e grossa para escudos, a rapariga apresentou-se ao mundo como a ele veio – excepto tatuagens que vieram depois, e não sei se para melhor – por cento e sessenta continhos. Mesmo sabendo que a inflacção tem andado pela rua da amargura, parece-me que cento e sessenta continhos é pouquinho. Dá oitenta continhos por mamoca.
Deviamos estar, de algum modo, satisfeitos. Que eu me lembre, e tenha visto, esta edição é a primeira, ou das primeiras, em que a figura de capa apresenta, com alguma visibilidade, a sua vulva. Ora, se por um lado isso era algo que o Ricardo Araújo Pereira não podia, de todo, fazer, por outro, era algo que nós machos andavamos a reclamar desde há longos meses: a ausência de vulvas nas mulheres portuguesas. Mas Ruth Marlene, novamente, apresenta-se com a sua vulva tal como veio ao mundo – e aqui, literalmente, não no tamanho é certo, mas seguramente no preparo piloso -, e não só ela como também a irmã.
Mas o que me preocupa é que se por um lado eu não sei exactamente se aquela é a Ruth Marlene, porque não a conheço muito bem e porque não está nada parecida com nada que eu me lembre dela, por outro temo que as raparigas estejam em sofrimento dentro de algum plástico transparente muito justo. É que é isso que elas me parecem: plásticas. Se a carga de photoshop é assim tão pesada, algo vai mal, e isso remete-me de novo para os cento e sessenta continhos. Janeiro é mês de saldos. Pode ser isso. Mas que isto faz cair fortemente a cotação da vulva e da mamoca, faz!