Ela falava e sorria. Falava e sorria com a boca, com os olhos e com as mãos. Na realidade, olhando com atenção, ela falava e sorria com todo o corpo.
O farsolas ouvia, mas, verdadeiramente, não ouvia nada. O farsolas estava ali por si próprio, ainda que se desse ares de genuína, mas altaneira, atenção.
Ela que estava ali por ele, provavelmente pensando que ele era outro, continuava a falar, a contar, a dar-se, entusiasmada e feliz, tentando agarrá-lo pelos ouvidos. Fazendo conversa pelos dois.
O farsolas interessado apenas em si e no que podia conseguir dali, procurava, numa elaborada mas oca encenação, acompanhar e reagir à conversa e ia sucessivamente debitando murmúrios, monossílabos, trejeitos e gestos que, sem lhe fazer perder a pose interessada e o mistério sedutor, se integrassem no que ela lhe dizia e contava.
– E tu? – interpelou-o ela, sorrindo.
– Eu? – engasgou-se o farsolas. – Eu? – repetiu teatralmente, com ensaiada modéstia.
Ela confirmou a pergunta com um aceno gracioso e um sorriso paciente. Ele sorriu indolente e engoliu um terceiro eu, fantasiando que ela o viesse a fazer.
– Eu não gosto de falar de mim – declarou, por fim, sério, erguendo a sobrancelha direita. Pousou a sua mão sobre a dela e erguendo-se ligeiramente sobre a mesa para se aproximar dela, ciciou: – Há tanta coisa boa para fazer com a boca e com língua que perder tempo a falar de mim até parece pecado.
Ela viu-o. Não o viu logo porque ainda deixou escapar um sorriso mas quando o viu, viu.
Ela ergueu-se na direcção dele, aproximou-se do ouvido direito e propôs-lhe no mesmo tom de voz:
– Comes-me se me responderes a duas perguntas.
O farsolas murchou e voltou a sentar-se. Ela também.
– Duas perguntas?
– Duas.
O farsolas suspirou ruidosamente, olhou em volta e regressou a ela:
– Duas perguntas, como?
– Duas perguntas sobre duas coisas de que me lembrei quando me disseste que era pecado falares de ti quando há tanta coisa boa para fazer com a boca e a língua.
– Tipo um concurso? – O farsolas não conseguia disfarçar o embaraço que lhe causava nadar fora de pé, numa praia que não era a sua.
– Sim, tipo isso. Queres ou não? – impacientou-se ela.
– Força!
Ela fixou-o, sorriu sem mostrar os dentes e perguntou pausadamente:
– Quais são os pecados capitais?
– Pecados capitais?
– Sim, quais são?
– São 7? – perguntou o ex-farsolas, esquecido da pose, com uma careta de dúvida.
A mulher acenou positivamente com a cabeça. Ele abriu um sorriso:
– Eu vi um filme com o Brad Pitt que...
– Vais responder ou contar-me o filme? – interrompeu ela, olhando para o relógio de pulso. – É que eu às sete e meia tenho pilates.
– A vaidade – começou ele, concentrado –, a inveja,... a... a... ah! a gula... Três – animou-se. – A vaidade, a inveja, a gula, a... Eu sei. Eu sei mais. A preguiça! É?
Ela confirmou.
Ele embatucou. Pensava, olhava em volta, tentava lembrar-se do filme, julgava o que pudesse ser mesmo mau mas nada, não lhe saía nada.
– Tenho direito a alguma ajuda? – Acabou por perguntar quando esgotou todas as formas e tentativas de, por si, conseguir dizer os restantes três pecados capitais. Olhou ostensivamente para o telemóvel pousado em cima da mesa da pastelaria.
– A ajuda do público – respondeu ela, sem pensar.
O farsolas olhou em volta, havia três pessoas em duas mesas, um empregado a servir às mesas e outro atrás do balcão.
– Desculpem – disse alto o farsolas, chamando a atenção de todos e ante o espanto boquiaberto da mulher. – Nós estávamos aqui com uma dúvida, uma coisa sem importância, se nos pudessem ajudar... É que estávamos aqui a falar sobre os pecados capitais, os sete pecados capitais e só nos lembramos de quatro: da preguiça, da vaidade, da inveja e da gula. Faltam-nos os outros três. Alguém se lembra?
A estranheza do pedido causou um silêncio total e os cinco inquiridos entreolharam-se à espera que algum respondesse.
– Ninguém se lembra? – reforçou o farsolas, dando um ar compreensivo à ignorância alheia mas desesperado ao seu pedido.
– A avareza, a ira e a luxúria – respondeu o homem sozinho numa das mesas.
– É? – questionou o farsolas, excitado, virando-se para a mulher.
– É – validou ela.
– Obrigado – agradeceu o farsolas, erguendo o polegar. Sorridente, acalmou, esperou que os olhares dos clientes e empregados os abandonassem e desafiou: – E a outra? A outra pergunta, qual é?
– “Dir-se-ia que estamos em Sodoma, em Sodoma! – repetiu o general, alçando os ombros.” – citou a mulher.
– O que é isso? – espantou-se ele.
– Uma citação de um livro, de um grande livro – corrigiu ela.
– E qual é a pergunta?
– De que obra é esta citação?
– Tu não disseste que as perguntas eram sobre coisas de que te lembraste quando eu disse que há coisas melhores para fazer com os lábios e a língua do que falar sobre mim? – Acusou o farsolas, aflito com a perspectiva de morrer na praia. – Não disseste?
– Disse – aceitou ela. – Foi do que me lembrei: dos sete pecados capitais e em quais podia integrar-te e desta frase.
O farsolas meneou a cabeça num trejeito espontâneo de enfastiado desinteresse e irritada indiferença.
– Como é que é a frase?
– “Dir-se-ia que estamos em Sodoma, em Sodoma! – repetiu o general, alçando os ombros.”
– “Dir-se-ia que estamos em Sodoma, em Sodoma! – repetiu o general, alçando os ombros.” – repetiu o farsolas, em tom solene e com entoação diferenciada. Suspirou e lançou: – “Dir-se-ia que estamos em Sodoma, em Sodoma!”
– Não sabes?
– Achas? – replicou ele, com desprezo. – E, se não querias nada comigo, não sei porque vieste.
– Se queres saber – disse ela –, não sabia que não queria.
O homem manteve-se pensativo, rodando a chávena de café.
– E se eu soubesse? – perguntou.
Ela sorriu e alçou os ombros:
– Tínhamos de dar razão ao general.
Ele olhou-a, emparvecido:
– E isso queria dizer o quê?
– Que era como estivéssemos em Sodoma – explicou ela, sem resultados na expressão dele. – Que sim – concluiu, aborrecida. – Que se tivesses respondido, eu tinha mantido a minha palavra.
– E assim?
– Assim, vamos embora – respondeu ela, puxando da carteira para pagar a despesa. – Cada um à sua vida.
Atento, o empregado aproximou-se, com duas contas na mão. Deixou uma em cima da mesa deles e levou outra ao homem que sabia os sete pecados.
O farsolas olhou para a conta com desdém.
– Eu pago – disse ela, abrindo a carteira em cima da mesa.
O farsolas encolheu os ombros. Ela colocou o valor certo em moedas junto ao pequeno papel da máquina registadora e levantou-se.
– Eu fico – comunicou o farsolas, rancoroso. – Vou beber uma imperial.
Despediram-se com dois beijos esquinados e ela dirigiu-se à porta.
O homem que também saía agarrou a porta e deixou-a passar, com uma ligeira vénia de cabeça.
– Obrigada – agradeceu sem tom a mulher.
– De nada – disse ele, saindo atrás dela.
Caminharam na mesma direcção, mantendo-se o homem dois passos atrás da mulher, até que ficaram lado a lado à espera para atravessar uma rua.
Ele sorriu, ela não, nem sequer o olhou.
– Desculpe... – interpelou o homem, atabalhoadamente: – A senhora desculpe...
Ela virou-se para ele, com ar seguro, quase intimidador:
– Diga?
– É que eu... – O homem hesitou e recomeçou: – É que eu não pude deixar de ouvir a citação que a senhora fez do “Idiota” do Dostoiévski, é um livro magnífico.
– É.
– Foi assim, não foi? – perguntou nervoso o homem, olhando as folhas que pendiam do braço do sofá, logo que a elas se juntou a última que a mulher ainda lia.
– Mais ou menos – respondeu a mulher, com um sorriso luminoso, tornando a pegar nas folhas e ajeitando-as. – Isso foi o que eu te contei – picou, piscando-lhe o olho.
– Eu estava lá, minha cara – declarou o homem, sem conseguir disfarçar o gozo da resposta. – Eu ouvi quase tudo.
– Julgas tu – replicou ela, mostrando-lhe a língua e passando-lhe as folhas. – E acaba assim? – perguntou, mais séria. – Eu a dizer “É”?
– Acaba.
– Então tenho de dizer, senão já não bate certo.
– Diz.
– É.