12 maio 2010

A hierarquia da relevância

Percorreu, ensonado, a longa distância que os separava, deliciado por antecipação com o que adivinhava seria a reacção dela à surpresa que lhe preparara ao longo de dias.
Cansado, chegou finalmente ao destino e tentou controlar a emoção que o desesperava por faltar ainda tanto tempo, minutos, eternidade, para poder abraçá-la outra vez.
Ansioso, fumou um cigarro e depois dirigiu-se para o ponto onde iria encontrá-la, preocupado por poder escapar-lhe algum pormenor que não poderia confirmar porque assim iria estragar a surpresa planeada com todo o carinho e atenção.
Esperou, sempre com a cabeça no ar para se certificar que não a perderia no meio da pequena multidão, saudades mal contidas, vontades reprimidas pela distância que os separara até esse dia que sentia especial.
A boca denunciou-lhe a alegria quando a viu, num sorriso que ela não devolveu, visivelmente aborrecida com algo mais importante do que o facto de ele estar presente e com isso nem contar.
Tentou perceber o que se passara, grave certamente, para justificar tão estranha reacção.
E foi quando recebeu a explicação que percebeu, na hierarquia da importância, a dimensão da sua irrelevância perante o desgosto que outro lhe dera e que se sobrepunha de forma conclusiva a qualquer emoção que a sua presença inesperada pudesse suscitar, e que concluiu, desencantado, que o amor já tinha acabado ou aquela pessoa não era quem julgara até então.

Celibato: Solteironas


IV. Solteironas. Custa-me fallar das solteironas porque ninguem está mais persuadido do que ellas da irregularidade do seu estado, e em geral é contra vontade que ellas ficaram celibatarias. É sobre tudo a ellas que se applica o adagio antigo: «0 casamento retarda a velhice». Acreditar que a virgindade conserva a frescura da côr, é um funesto erro de que as solteironas são as victimas. Uma solteira que fica virgem depois de ter attingido o desenvolvimento completo de seu physico não tarda a ser assaltada d'uma multidão d'indisposições, d'erupções cutaneas, de flatos hystericos, mortaes inimigos da sua belleza. A sua frescura decresce, os seus encantos murcham, e a sua saude altera-se á medida que se demora em cumprir o fim da natureza. Ao contrario a mulher casada, sobre tudo o que já concebeu, bebe nova frescura nos prazeres que são vedados à virgem, e emquanto que uma brilhante flor desabrochada recebe do casamento o desenvolvimento de todas as suas faculdades, a outra, de mau humor e sempre afflicta por encommodos diversos, arrasta uma vida languida e inutil, sem amar e sem ser amada.

L. Seraine. 19??:170

InVocações (VII)

Mágico? Estás aí? Aqui, no limite dos Mundos, eu sei quem sou. E se as palavras ficarem mágicas, e se tocarem o teu Mundo, e se eu tocar o teu Mundo, quando tocar o teu Mundo ainda saberei? Um dia, respondeste com o meu nome; nomeaste e eu, agora, sou. Sim, um livro inteiro nasce do teu título. A tua cartola ainda gira no chão, gira no infinito e chega ao eterno. Não, o tempo não parou...

Quando estás aqui, o tempo funde, como areia em vidro, as horas, os minutos, os segundos em ti.

Então, não há tempo, não acontece, só tu, só tu aconteces. A cartola gira perdida porque é de ti; sem tempo e sem ti só fica um vácuo absurdo. Sem areia nem vidro, só o calor que funde; tonta do calor. Estás aqui?

11 maio 2010

Orgasmo feminino: ideias que funcionam

A ordem é para despir. Despir, pois! Despir o mais possível. Roupas, brincos, colares, aparências, preocupações, neuroses, preconceitos, etc. Despir primeiro. Lamber, beijar, conversar, roçar, até que a última peça do “traje” mais íntimo caia por “terra”.
Despiram? Então aqui vai uma dica! Sejam lá quantos forem os quilómetros de corrida na “arena” que a cada um satisfaçam, haverá uma altura de inevitável rendição. No sexo por prazer o orgasmo não é um objectivo, apenas uma conclusão, muitas vezes desejável. Portanto, senhoras…”don’t stress”! Cavalheiros… não sejam antipáticos! Dêem lá uma ajudinha às senhoras, que isto para elas costuma ser um bocadinho mais difícil… Para os mais atléticos, e com algum fôlego de corredor de fundo, sugere-se que saltem para cima das senhoras. Saltaram? Que tal? Sentem-se confortáveis? Então agora levantem os bracinhos! Dêem espaço às senhoras para baterem uma à vontade enquanto as fodem devagarinho… depois, melhor, melhor, é deixarem activo o comando de voz: “mais depressa”, “mais devagar”, “mais fundo”, “oh! Pára aí!”, “assim…isso!”… Os bracinhos doem? Falta de prática. Bem se vê que têm andado a faltar aos treinos! Não se preocupem, isso com o tempo melhora. Estão a ver uma cara muito “feia” com olhos inchados de prazer? Bom sinal… Então? Resulta?

(… meninos bonitos… portaram-se bem… merecem uma recompensa à altura… não? Agora, meninas… é a vossa vez… façam o vosso melhor, sim? Não envergonhem o género feminino! Não se esqueçam… isto é uma competição, e das mais cerradas… ganha aquele que for capaz de fazer as maiores “maldades” ao outro…)

(Des)enlace


Viagem com retorno
a de agora em diante;
não mais bilhetes só de ida,
o regresso marcado,
a viagem inviolável
do teu sexo.

Regressarei para redimir
outras façanhas nossas,
assim saibas ouvir-me
e entender o estrondo
de um apoteótico
desenlace.

Foto e poesia de Paula Raposo

InVocações (VI)

O chão estala o eco de um tapete intacto. A beleza é funda, muito funda nos teus olhos; lua azul, a perfeição é um fascínio sinistro. Impasse da nudez. A lua que desce, lua que desce, lua que desce. A lua parou. O Mágico riu-se e a árvore riu-se; um grito empalideceu e quebrou-se no tapete. A lua desceu no lago e encheu-lhe o ventre. Dela. Dela. Dela. Ela. Eu. Era o Mágico que chamava, vibrava o nome no limite dos Mundos. O nome trespassado pela vontade. Olha. A lua azul transborda nos olhos do Mágico, enche os dela. Dela. Dela. Dela. Ela. Eu. Nudez do impasse. Depois trespasse. O chão nos pulsos. O eco aproximou-se e disse que estava na hora de ser um. O eco sentou-se e deitou-nos no linho do tapete. O chão fechou-nos lá dentro. A árvore era uma miragem do mundo do Mágico. Não queria voltar. Encostou os ramos ao eco e disse que lá não podia rir. Não entendia. As pessoas riam de lábios falsos e ela ria de ramos verdadeiros mas não podia rir. O mundo do Mágico não fazia sentido no mundo sem sentido. Preferia ser uma miragem a estalar no chão por baixo das nossas costas. Uma miragem. Mágico.

Preservar a dignidade



Pena capital


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oglaf.com

10 maio 2010

Pure Chess

- Ó Cavalo das Brancas, porque é que de há uns tempos para cá não há peões por perto dos vossos bispos?

Maria João: conto das palavras adormecidas

Olho para ela que se perde sem ele. Olho para ele que a vai perder. E se eu fosse ela e tu fosses ele, o que iria eu ver? Sim, eu sei, mas não quero saber. Sim, bem vejo, mas não quero ver. Tu nada dizes e eu cada vez menos te consigo ouvir. Sabes que não ensurdeci? Sabes que ensurdeceste? Tenho pena, meu amor, tenho tanta pena de não te ver aqui. Tenho tanta pena de saber que talvez até estejas e, de cabeça tapada, tentes - talvez - fingir que não. Quando a voz começa a cambalear ainda é no teu peito que deita as costas. Quando os dedos dão passos incertos ainda sentem as tuas mãos segurar os joelhos bambos. Não te digo, não, não te digo; calei-me. Tanto que foi preciso dizer-te para ouvires uma só palavra. Tanto que andei para veres um só passo. Sinto-te triste. Por favor, não fiques triste. Não tens culpa da mudez que te assalta quando gritas por mim. Não tens culpa de engolir o silêncio. Não tenho culpa, não sei se apenas imagino. Se calhar nem são os teus gritos que me inundam os cabelos e escorrem nas costas. Se calhar imagino. Olho para ela que se perde sem ele. E se eu fosse ela?

E o mote é...


















Todo o pássaro bebe água
só a coruja bebe azeite
mas a tua passarinha
come carne e bebe leite.


João Sarabando, 1999:10

Pau duro


Alexandre Affonso - nadaver.com

09 maio 2010

Assim, sim


Não me espantaria
se regressasses
como se nada se tivesse passado.
Não me surpreenderia
se fosse hoje o dia de ontem
e amanhã o atraso
não justificaria
a lembrança.

Prefiro que fiques como estás
onde estás e porque estás
e que não voltes:
nunca aqui estiveste.

Foto e poesia de Paula Raposo

Conto de um poema

As minhas palavras são poema. Os meus braços são poema. Os meus passos são poema. E ainda sonho o teu poema, o poema de ti; o teu corpo é o meu poema, só pode ser poema. E sei do meu poema - tu - atirado ao chão como carne em chaga, inflamado pela vermelhidão roxa e feia das hormonas, esfregado contra um corpo fêmea inchado de cio, animais engalfinhados sem o ritmo da música, espasmos de criaturas acres, entumescidas num prazer feio de unhas em pele irritada. A beleza violada, desmanchada, envenenada. Um rouxinol que, de repente, pousa na árvore e ronca. Por isso, eu que te fiz poema, pergunto-te: o que fazes do poema de ti? Como podes fazer-lhe coisas tão feias?