O céu uniformemente cinzento dos dias sem sol e o opressor silêncio dos vidros duplos provocavam-lhe náuseas. Os papeis que, apesar do seu dedicado esforço e das novas tecnologias, se acumulavam provocavam-lhe um sentimento de derrota diária que o mal amanhado almoço comido à pressa e a contínua sequência de cafés azedava até ao vómito ou às ácidas pontadas no estômago do fim da tarde.
– Parece que não está com boa cara, homem – repetiam, dia sim dia também, as várias pessoas que iam e vinham trazendo e levando papeis, só substituindo o homem pelo seu nome ou a cara pelo aspecto ou pela cor.
Ele, o homem, enclausurado no ambiente de luzes, ar e som artificiais, definhava e empalidecia de manhã à noite, desde que cruzava o hall do prédio até que reentrava no Metro para voltar para casa.
“Devo ser o homem mais cinzento do mundo” lamentava-se fixo na linha de metal electrificado do fosso do metropolitano. “É uma ironia, um paradoxo, o homem mais cinzento do mundo acabar numa colorida poça de vermelho vivo”, sorriu. “E ainda colorir o ferro e o betão da linha tão cinzentos como ele”, pensava sonhador, perscrutando em volta para se certificar da inexistência de crianças na estação. “O homem cinzento é um suicida ético”, vangloriou-se, inconscientemente satisfeito por ver duas crianças de mochilas às costas a descer a escada.
“Ainda não é hoje que largo a pasta” brincou, passando-a distraidamente da mão esquerda para a direita, e reconhecendo a mulher que estava ao seu lado e que ali via praticamente todos os dias tocou-lhe ao de leve no braço, num gesto espontâneo, irreflectido e que o surpreendeu.
– Sabe? – perguntou, acompanhando o toque.
A mulher sentiu a ponta dos dedos no braço, ouviu a voz, olhou-o sem expressão, ainda que também o reconhecesse, e manteve o olhar esperando que ele continuasse. Surpreendido consigo próprio e pelo relativo interesse da mulher, ele anunciou:
– Acho que sou o homem mais cinzento do mundo.
A mulher ouviu, encolheu os ombros e perguntou-lhe, impessoal:
– E depois?
– Depois?!
– Sim, e depois? – replicou a mulher, esticando o pescoço conferindo se o comboio já se via no túnel. – É a sua opinião e se o senhor for mesmo o homem mais cinzento do mundo a sua opinião é a opinião mais cinzenta do mundo e se a sua opinião é a mais cinzenta do mundo, acha que alguém se interessa por ela? Acha que tem algum interesse? Algum valor? – Resignada com a inexistência de luz ou barulho vindo do túnel, a mulher concluiu mudando de registo: – Ah! E se for o homem mais cinzento do mundo é um ser único, especial, e o seres únicos e especiais não são cinzentos, pelo que…
– Já sei… – interrompeu o homem, com uma careta e um sorriso. – Se for não posso ser.
– Nem mais – anuiu a mulher com um sorriso involuntário.
– Olá, eu chamo-me Raimundo – apresentou-se ele, esticando a mão.
– Sílvia – despediu-se ela, retribuindo o cumprimento manual e entrando para a carruagem que parara em frente deles. – Até amanhã, Raimundo, o homem que não é o mais cinzento do mundo.