23 junho 2010

Sobre os pecados contra a "castridade"

De há uns tempos a esta parte, tenho andado a ler o “Navegador Solitário”, de João Aguiar, autor que, infelizmente, faleceu algures nas páginas deste livro.

Este é o diário de um miúdo púbere, com grandes dificuldades de expressão escrita e que vive atormentado por um contexto muito particular. Para além de se chamar Solitão Francisco e de lidar mal com isso, tem ainda de conviver com uma mãe e um pai em constante discussão e com perspectivas completamente opostas sobre a vida, uma tia com tanto de médium como de mexeriqueira, um avô que, apesar de ter falecido há já algum tempo, insiste em dar conselhos pouco escrupulosos ao seu neto e o facto de o seu melhor amigo ser toxicodependente e prostituto.

Como adolescente que se preze, Solitão vive obcecado por sexo e a sua primeira relação sexual redunda num acto frustrado, muito por causa do “piçarvativo”. Para piorar tudo, Solitão tem de enfrentar o padre Elias em confissão e é o trecho do relato desse episódio que aqui transcrevo. Ao lê-lo, depois de ter soltado uma gargalhada, achei que seria um excelente motivo para uma posta aqui no blog porcalhoto.

(…) resolvi ir confessar-me hoje e afinal acabei por ter uma discussão com o padre Elias.

Foi assim quando eu me ajoelhei e depois daquelas coisas que se dizem sempre no princípio, então quando é que te confessaste da última vez e tudo isso eu comecei a dizer os pecados e já se vê logo o primeiro foi o da castridade eo padre disse o quê e eu repeti e ele disse com ar chateado pronto já percebi mas tira-lhe o érre e eu é que não percebi logo e ele explicou mas já irritado porque o padre Elias está a ficar um bocado rabugento se calha é da idade e depois disse então fizeste coisas contra a castidade e foi sozinho ou acompanhado e eu respondi desta vez foi acompanhado e então ele perguntou foi com um rapaz ou com uma rapariga e eu respondi com uma rapariga e até aqui eu já estava habituado porque estas perguntas são sempre as mesmas a malta goza sempre com isso só que depois ele queria que eu lhe dissesse o que é que eu tinha feito e com quem e mais uma porção de coisas que eu acho que não deve ser normal perguntar e aí eu disse que não dizia porque afinal eu estava lá para me confessar a mim e não a miúda que essa podia ir confessar-se ela própria e além disso não queria contar os promenores e então o padre Elias ficou mais chateado e discutiu comigo e lá acabou por dar-me a besolvição mas depois deu-me de penitência rezar vinte terços aquilo foi vingança grande sacana e eu acho que não volto a confessar-me e afinal se a gente tem tesão por que é que há-de ser pecado.

O que eu não percebo é por que é que as coisas são assim está tudo muito mal feito se a gente não pode fazer amor nem dar pinocadas à vontade por que é que havemos de ter tesão se era só pra fazer filhos arranjava-se outra maneira e assim as pessoas podiam ter só os filhos que quisessem e se não quisessem não tinham nenhum era bem melhor mas a verdade é que temos tesão e isso afinal é que é o problema e já sei que esta noite não vou conseguir dormir.
"

Isto sem pontuação não é fácil de ler, pois não? Quase merecia um Nobel!

Desenho desanimado

As palavras que te disse são as legendas atrapalhadas de mim.

Mulher em borracha faz uma dança do ventre rodando-se uma manivela

Um miminho oferecido pela São Patrício.

A maioria vence



HenriCartoon

22 junho 2010

Vinho Amante


O teu corpo, meu amante, é vinho e êxtase. Quando te entornas sobre mim, dos teus olhos a arder, rompem-se pombas...
[um aberto poço]
Artéria grossa o sangue lateja,
Quarto, poema, deitado, poeta e bebedor.
Num só olhar teu, fecundas-me, um por um, os meus lábios, quentes, escarlates.
[A boca perversa pensa]
Vem, suplico-te,
Vem descobrir a pomba escondida na fenda da rocha...

[Blog Vermelho Canalha]

Inadiável

Deixaste-me sem palavras.

É um dom:
deixares-me sem palavras.

Não quer dizer
que sejas alguém especial
(lá por que me deixas sem palavras),
mas talvez sejas
o movimento imperceptível
da minha memória
escorrendo saudade;
um longo caminho desconhecido
que me abre alguma porta;
fazendo das palavras
o regresso.

E, desse dom (teu)
uma paixão inadiável.

Poesia de Paula Raposo

«Gaiola Aberta» nº 43 e «Grande Enciclopédia Vilhena» nºs 1, 2, 5 e 6

Prendinhas da Salomé (obrigada!) compradas na Feira da Ladra especialmente para mim.


21 junho 2010

Comer Com Boca

A boca. Paralisa. Fecha-se. Come-te, o cavalo, o trovão. Nervo a nervo, uma massa em silêncio, no ar desesperado, a anestesia súbita. Poro com poro, no poro do poro, e sempre em rotação mó...
Canduras. Vermelhas correm no teu sangue, hesitado, no tesão que em ti voa, passa, come, no orvalhado que sentes desafogadamente.
O corpo tudo expõe. Tão agudo. Nos montes. Nu estendal, grave, tentas manter invisível o suco rebarbativo, lascivo, que queima. Quase... Quase... Doendo!...
A língua enrosca-se tendo por égide um pénis em adoração.
Tétrica convulsão, após o último beijo, que de tão maduro...
Splash!...
Rotação!...
Profundidade!... Deus!...
(e o orgasmo é aparição)
A boca. Nervo a nervo, a sorver a matéria, encharcada e nua até às pálpebras, num delírio, louco, que ensopa o tecto, o soalho, e as minhas devassas fantasias...

[Blog Vermelho Canalha]

Quadro (II) - Autocarros

Aqui, no agora, todos os pássaros pousaram. Os autocarros vão passando cheios de vazios que engoliram; já ninguém vê as pessoas. Os amantes não souberam amar nem sequer uma eternidade. O copo quase vazio, os corpos embriagados de lugares comuns. Um lobo uivou à lua entristecida confundindo-a com o reflexo no lago. Lá, no longe, o azul da lua tremeu. Não chores, minha lua pintada, não chores. Já chove.

Acerto de contas



HenriCartoon

Caiu na rede


Alexandre Affonso - nadaver.com

20 junho 2010

Xadrez

A face magoada
apresenta-se de cor vermelha
- sangue vivo -
e pode doer ou não:
depende da perspectiva.

Cada dor tem a sua cor,
tal como cada face
apresenta a sua mágoa.

E, a face magoada,
traz o sangue vivo
- subjectivo -
doloroso de uma farsa;
marcado num trilho;
disfarçado de rei:
o xadrez do déspota.

Foto e poesia de Paula Raposo

Tradução do fundo

Quando estou aqui, olho em volta, olho o céu e sonho mais. Quando não estou aqui, estou a olhar em volta, a olhar o céu e a sonhar mais. E se tudo isto não for ainda estupidamente, absolutamente perfeito, ainda assim, será apenas porque é.

Posso não possuir o Mundo mas o Mundo, sim, o Mundo ainda me possui e o movimento ajoelha-me, pasmada, estupefacta, ofegante. E a lua, na solidão doce que me acolhe os medos desta imensidão que me tem, é ainda um milagre.

Não caí nem cairei na cegueira dos disciplinados pelo passar de horas de sessenta minutos que subtraem dos anos tudo menos o tempo. Eu ainda sei que tudo isto que me come, que me come a pele, que me come os dias, é de pasmar, é o Mundo, é o Reino, o dia que anoitece, a noite que amanhece, a brutalidade da existência nítida nestas retinas.

Entendes? Tudo isto que te digo consigo sentir. Não tenho garras nem âncoras para superfícies.