Envolveu sem pressa as curvas generosas do seu corpo com a toalha macia de feltro.
Em movimentos suaves como carícias, aquela mulher voluptuosa ia secando a pele húmida, convidativa, nos mais recônditos lugares, com uma destreza que jamais nenhum amante seria capaz de fazer.
Fechou a janela para impedir que o vapor quente da água se escapasse da casa de banho.
Olhou o espelho que reflectia a sua imagem desde o rosto até um pouco abaixo da cintura.
A sua curiosidade feminina levou-a a deixar cair a toalha e observou-se demoradamente...
Com os olhos fixos no espelho perguntou-se mentalmente a si mesma o que procurava ela.
Algum enigmático segredo se mantinha oculto e inexplicado. Uma mulher era apenas aquilo que ela estava a ver? Não seria necessário redefinir as concepções de pecado, de amor, de humanismo, de vida?
Alguma célula mal concebida não estaria em falta ou perdida por um erro de paralaxe que tudo distorcia? Que estranho que ela se sentisse apenas e só aquilo que via!
A ígnea neblina do vapor de água ia tornando a imagem no espelho menos nítida. Sacudiu a cabeça, abandonou estes pensamentos e procurou os chinelos. Claro que não há mais nada, pensou conformada. Virou as costas ao espelho e saiu da casa de banho...
O espelho quis chamá-la, explicar-lhe. Ela não era só o que ele lhe mostrava na sua gelada e estática postura. Aquele corpo seria diferente, quando ela percebesse a verdade mais irrefutável. A verdade do amor que ela nunca teve...
Desgraçadamente ele sofre o seu idílio sem esperança, a indiferença daquela bela mulher dói-lhe, mas a sua rigidez não a atrai. Todos os dias a vê, nua, apetecível, mas nada pode fazer. Será que ela não percebe que não é ele que a reflecte mas sim ela que o reflecte a ele?
Se por dentro da sua superfície brilhante circulassem vasos sanguíneos, o espelho teria empalidecido quando, subitamente, a viu regressar à casa de banho de onde tinha acabado de sair. Teria ela percebido os seus pensamentos? Teria ouvido os seus sussurros? Teria compreendido o seu drama, o seu amor por ela? Inquietou-se, receoso mas esperançado.
Ouviu-a murmurar enquanto desligava o interruptor, que seria certamente por ela se esquecer tantas vezes de apagar a luz da casa de banho que a conta da electricidade era sempre tão alta no fim do mês.
Deixou o espelho na escuridão. Sem a sua imagem, sem pensamentos românticos, sem utopias, ele nada poderia agora reflectir. Tornou-se nada...
Voltou a ser uma massa fixa à parede sem objectivos, sem significado, como um peito sem amor.
Foi então que todas as pequenas gotas do vapor de água começaram a deslizar pela face nua do espelho.
Como lágrimas...
Rui Felício
Blog «Encontro de Gerações do Bairro Norton de Matos»
07 novembro 2010
Cuidado! Eles "andem" aí!
E pronto, está encontrada a razão do declínio ocidental, das hemorróides e até do défice orçamental.
06 novembro 2010
Cartas
Nesse cais onde és ardina de ilusões e poeta de corações, passo eu, de quando em vez.
Nesse cais onde as letras são direitas mas as linhas divergentes, dúbias, repouso eu por vezes.
Nesse cais onde as cartas têm remetente e nada mais, indaga-se a direcção do envio.
Por vezes esqueço. Esqueço que as tuas cartas não têm destinatário e recebo-as, leio-as, fico com elas para memória futura.
Enfim, as minhas cartas também só conhecem o remetente. Por vezes até eu só conheço o remetente, e por vezes até me são devolvidas.
De quando em vez, neste marco de correio, lá aparece uma resposta... Também não escrevo muitas cartas. E como não tenho o hábito de escrever a mais de três ou quatro pessoas, as respostas também não podem abundar.
Quando chegam, essas respostas claro, vou buscá-las àquele ou a outro cais. Mas como não esperei que viessem ter ao meu marco, não sei exactamente se me eram dirigidas... e habitualmente até as devolvo. Mas quando as leio, descubro imediatamente as próximas perguntas para fazer, as aventuras para contar, os delírios, as ternuras e até os desabafos.
Às vezes as cartas riem, às vezes choram... Por vezes até gritam.
E nesses gritos de mudança descubro a profecia do admirável... mas também da desordem!
Nesse cais onde as letras são direitas mas as linhas divergentes, dúbias, repouso eu por vezes.
Nesse cais onde as cartas têm remetente e nada mais, indaga-se a direcção do envio.
Por vezes esqueço. Esqueço que as tuas cartas não têm destinatário e recebo-as, leio-as, fico com elas para memória futura.
Enfim, as minhas cartas também só conhecem o remetente. Por vezes até eu só conheço o remetente, e por vezes até me são devolvidas.
De quando em vez, neste marco de correio, lá aparece uma resposta... Também não escrevo muitas cartas. E como não tenho o hábito de escrever a mais de três ou quatro pessoas, as respostas também não podem abundar.
Quando chegam, essas respostas claro, vou buscá-las àquele ou a outro cais. Mas como não esperei que viessem ter ao meu marco, não sei exactamente se me eram dirigidas... e habitualmente até as devolvo. Mas quando as leio, descubro imediatamente as próximas perguntas para fazer, as aventuras para contar, os delírios, as ternuras e até os desabafos.
Às vezes as cartas riem, às vezes choram... Por vezes até gritam.
E nesses gritos de mudança descubro a profecia do admirável... mas também da desordem!
Fresca água
Deixo-me levar:
a água é tão fresca
e corre suave.
Não sei onde irei parar,
não sei para onde vou
mas vou e vou;
jamais tropeçarei
ou largarei este anseio.
Vou, levada, pela fresca água
da muito suave corrente.
Cruzamo-nos:
eu vou e tu vens.
O futuro sorrirá.
Poesia de Paula Raposo
05 novembro 2010
Madrugada
A luz distante, suave, de um candeeiro lá fora deste mundo criado a dois, tu perdida num paraíso e eu vou ter contigo depois, como um farol a luz que te faz brilhar mesmo no centro desse olhar que me dedicas, lá fora, uma luz, tão perto agora que me beijas com a paixão divina, e eu sou teu e tu és minha, os teus olhos fechados para que nada possa distrair-te a emoção, perdida num paraíso sem a orientação da luz que persigo porque te desenha na penumbra o contorno que me deslumbra, a sonhar acordado o momento partilhado que ninguém mais poderá reclamar, só tu e só eu, perdido no céu, na tua boca, a beijar, orientado apenas pela luz no teu olhar por entre pálpebras semicerradas, as persianas quase fechadas mas a luz distante consegue entrar, reflectida no teu olhar brilhante e na pele que me entregas aos lábios e às mãos, ao corpo inteiro que sou, tudo aquilo que tiro, tudo aquilo que dou, e a luz lá fora a apagar para finalmente dar lugar ao sol que já está a nascer enquanto te encostas ao meu peito e te sinto adormecer.
Carta ao Viajante (IV)
A verdade é que apenas pode encontrar a resposta quem pergunta; faltava querer mais do que a resposta, faltava querer perguntar; faltava, antes sequer disso, encontrar a pergunta. Andava irrequieta, andava por ruelas e vilas e aldeias e pessoas e povos e peitos e mundos e nadas. Andava, andava, constantemente nessa sofreguidão de movimento, nessa intranquilidade do todo que procura, que avança, que afiança que corre sem parar porque corre atrás da felicidade, de porto em porto, de cais em cais, de si em si, corre. Um dia, bem no meio de um salto mortal entre duas montanhas, enrolei-me na pergunta: corre assim, sem o poder evitar, quem corre atrás da felicidade ou quem foge à frente da tristeza? Uma única resposta genuína, verdadeira, real, acerca de mim, me traria (in)certa felicidade, é mais do que tanta gente tem. Nesse dia parei, incerta, e aqui estou, à espera do que me venha apanhar. É isso que eu faço, esperar a tristeza que ainda não chegou e, porque ainda não chegou, entretanto sou feliz. Também não procuro o amor, fico sentada na minha cama, - cais de embarque, dirias tu - pode ser que me apanhe. Por diversas vezes me apanhou; nessas alturas ofereço ao meu passageiro um bilhete e uma chave e espero para ver se entende; se entender, espero para ver o que faz, que escolha faz; quase posso jurar que nenhum sequer entendeu, embora tenham feito muitas coisas e muitas escolhas que inventaram. Se o amor é feito de entendimento, afinal quem me amou?
04 novembro 2010
Fala-me da tua vida sentimental
Já tinham falado de tudo, já tinham rido de si e dos outros (que dueto faziam, na arte da má-língua!), já tinham desconversado (sempre tinham sido excelentes na arte do desconversar), já se tinham contradito ao explicar a terceiros como se haviam conhecido, há tantos anos atrás (uma coisa de pormenor, mas ela levava a sério qualquer pormaior, como lhes chamava), já tinham desfrutado da companhia (nem sempre presente) um do outro e encontravam-se agora a usufruir de um daqueles silêncios confortáveis, só possíveis entre quem está plenamente à vontade consigo e com quem está. Ela juraria que ambos sorriam.
Sem aviso prévio, ele interrompeu-lhe a tranquilidade e atirou:
— Fala-me de ti.
— Como assim, "fala-me de ti"? Já fizemos a viagem do costume pelos meses em que não nos vimos, já voltámos ao passado, já falámos dos futuros, já partilhámos planos e inventámos projectos. Que queres que te diga?
— Fala-me da tua vida sentimental.
— Ó P., que disparate, a que vem isso agora?
— Gosto de saber de ti.
— Eu sei. Mas já te disse que sou feliz, que tenho amigos que me fazem rir e uma família que me adora e apoia incondicionalmente e um emprego que me completa. Sou feliz, é nisso que consiste a minha vida sentimental.
Ele rodeou-lhe os ombros com o braço forte, enquanto a bombardeava com um olhar redondo mas fugaz e deixou-a exceptuar-se a ouvir-se dizer que tinha medo. Medo de não ser a miúda apaixonada e temerária que ele conhecera há quase uma vintena de anos atrás. Medo de, nos anos em que não houve contacto entre eles, ter perdido a capacidade de acreditar. Medo de se ter tornado numa mulher cínica e seca, daquelas que já não choram quando assistem a uma comédia romântica nem invejam a heroína da história porque sabem que, depois do "The End", vêm os desencontros e as discussões e que que têm a certeza de que não existe o "they lived happily ever after" a não ser nos projectos lucrativos dos produtores de Hollywood e na cabecinha das jovens tontas, como ela era quando ele a conheceu. Medo de se ouvir dizer, uma vez mais, que não tem pachorra, nem disponibilidade mental, nem capacidade para mudar a sua vida (feliz, reiteraria, se ele inclinasse a cabeça para o lado, como faz sempre que não a leva a sério) um milímetro que seja por quem quer que seja porque, at the end of the day, nunca vale a pena e quem se lixa (ó-i-ó-ai) é sempre a tonta da romântica.
Ele deixou que ela não se ouvisse a dizer nada disto.
Ela agradeceu-lhe a amabilidade e amaldiçoou-lhe a capacidade de a pôr a pensar naquilo que faz por atirar para o saco das coisas a adiar.
E o silêncio, subitamente, desconfortou-a.
Sem aviso prévio, ele interrompeu-lhe a tranquilidade e atirou:
— Fala-me de ti.
— Como assim, "fala-me de ti"? Já fizemos a viagem do costume pelos meses em que não nos vimos, já voltámos ao passado, já falámos dos futuros, já partilhámos planos e inventámos projectos. Que queres que te diga?
— Fala-me da tua vida sentimental.
— Ó P., que disparate, a que vem isso agora?
— Gosto de saber de ti.
— Eu sei. Mas já te disse que sou feliz, que tenho amigos que me fazem rir e uma família que me adora e apoia incondicionalmente e um emprego que me completa. Sou feliz, é nisso que consiste a minha vida sentimental.
Ele rodeou-lhe os ombros com o braço forte, enquanto a bombardeava com um olhar redondo mas fugaz e deixou-a exceptuar-se a ouvir-se dizer que tinha medo. Medo de não ser a miúda apaixonada e temerária que ele conhecera há quase uma vintena de anos atrás. Medo de, nos anos em que não houve contacto entre eles, ter perdido a capacidade de acreditar. Medo de se ter tornado numa mulher cínica e seca, daquelas que já não choram quando assistem a uma comédia romântica nem invejam a heroína da história porque sabem que, depois do "The End", vêm os desencontros e as discussões e que que têm a certeza de que não existe o "they lived happily ever after" a não ser nos projectos lucrativos dos produtores de Hollywood e na cabecinha das jovens tontas, como ela era quando ele a conheceu. Medo de se ouvir dizer, uma vez mais, que não tem pachorra, nem disponibilidade mental, nem capacidade para mudar a sua vida (feliz, reiteraria, se ele inclinasse a cabeça para o lado, como faz sempre que não a leva a sério) um milímetro que seja por quem quer que seja porque, at the end of the day, nunca vale a pena e quem se lixa (ó-i-ó-ai) é sempre a tonta da romântica.
Ele deixou que ela não se ouvisse a dizer nada disto.
Ela agradeceu-lhe a amabilidade e amaldiçoou-lhe a capacidade de a pôr a pensar naquilo que faz por atirar para o saco das coisas a adiar.
E o silêncio, subitamente, desconfortou-a.
Tamanho não é documento
Cá está. Um baralho de cartas com imagens humorísticas, em inglês. As cartas são pequeninas... mas a qualidade é enorme.
Agora estão juntinhas às dezenas de baralhos de cartas e de tarots eróticos da minha colecção.
Agora estão juntinhas às dezenas de baralhos de cartas e de tarots eróticos da minha colecção.
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