28 janeiro 2011

preliminarmente...

A coisa passa-se assim: mulher que é mulher tem de mexer comigo. Tem de haver ali alguma coisa entre a sugestão e o pecado, com laivos de poesia à mistura, que lhe deslize pelo corpo, que lhe escorra pelos dedos e que desabroche num sorriso.

Tem de haver curvas, claro, mas curvas de nível, como coisa inusitada mas persistente. Localizadas, certeiras, previsíveis e, ainda assim, contendo em si o mistério de um poema, deixando depois a cada um e a cada gosto o sentido da justa proporção das coisas.

E tem de haver, também, saboneteiras, como dizia o velho Vinícius de Morais, que mulher sem saboneteiras é senhora de menos graças. E os joelhos são fundamentais, de personalidade definida mas sem imporem a ossatura; tal como a curvatura interna da coxa, essa inefável raiz da coxa, – tem de se impor pela suavidade do contorno, mas é imperativo que ele marque presença. E aí então, ao toque, deve prevalecer um arrepio de veludo, apenas perceptível de olhos semicerrados.

No percurso dos seios até às nádegas, a óbvia e necessária sugestão de violoncelo. E as coxas, depois, devem ser pródigas, parideiras, mas nunca excessivas. Por isso as nádegas devem desenhar-se em espaços algures entre o pêssego e o sonho e afirmarem a sua presença gloriosa depois de uma cintura bem marcada.

Entre o umbigo, o ventre e o monte de Vénus deve existir uma cumplicidade de vales e colinas, onde cada elemento se complementa e se sequencia como regra constante do universo, como valsa impossível em vergel inventado.

Sempre a barriga da perna deve conter a simetria com a sua irmã gémea, num sobressalto claro do joelho, que a anuncia, e do artelho, que a remata, e com proporções tais que façam empalidecer de inveja as colunas gregas da antiguidade clássica.

E pode até haver marcas da guerra dos dias, refegos de parto ou de assim ser, vincadas, ténues ou profundas, como a Vida, mas tudo deve assumir a volúpia de ali estar apenas porque sim e serem assumidas e servidas, sempre em regime de profundo e assumido voluntariado, à mesa ou à cama ou, mesmo, no tapete da sala ou, ainda, no desconchavo anárquico de uma súbita urgência, no esplendor da relva de um jardim ou de um esconso discreto de escada, como no rebordo rumorejante da onda salgada, mas indubitavelmente como uma bandeira de carne e coração na explosão de um momento.

Tem de haver essa conjugação de sentir, de querer, de estar e de partilha, de se dar tanto ou mais de quanto se recebe, no turbilhão que afoga os corpos e os liquida em êxtases de volúpia. Mulher com reservas de pudor, mentais ou físicas, é – como acontece com o homem – o inevitável acto falhado, a infelicidade do desperdício, a comédia triste do melodrama.

Os fluidos devem fluir… fluidamente, na exacta apetência dos sentidos, no fulgor inexcedível da circunstância, na fruição da natureza em grito a plenos pulmões, nem que seja sob a forma de um murmúrio, de um espasmo gorgolejante, de um ai que mal se entoa.

E a mulher é feita também de cabelos. Curtos, compridos, lisos, ondeados, encarapinhados, fulvos, morenos, alourados, onde os nossos dedos se emaranham, se embaraçam na tepidez da nuca. E uma leve penugem, também, que sobrevenha em recônditos descobertos de um corpo, pode ser factor determinante.

Em tudo, aquela cadência de veludo, ao correr dos dedos e uma mistura de quente e de frio só decifrável nesse nível de impressão digital deixada muito levemente sobre a pele.

E depois há sorrisos, cúmplices de olhares, que só existem quando a mulher é.

E aí se realizará um momento perfeito.

Senha e contra-senha


Ravina


1 página

oglaf.com

27 janeiro 2011

Um repentino pensamento libertador

Pôs a mão esquerda no bolso interior direito do casaco e, como esperava, encontrou-o vazio. Com os lábios cerrados, expirou pelo nariz e tentou lembrar-se onde guardara o papel com o número de telemóvel. Nada. Então pensou que as coisas já não se fazem assim, que agora se troca de números com um toque de um telemóvel para o outro. Mas eles não haviam feito isso, ainda que não soubesse porquê.
Olhou para o seu telemóvel pousado na secretária, primeiro com o absurdo desejo de que o aparelho tocasse, depois com a inútil esperança de que por se fixar nele se lembrasse onde guardara o papel e, por fim, com a absoluta certeza de ter perdido o papel e de nunca mais voltar a falar com ela.
“Ela pode ligar-me”, desdramatizou ainda a olhar o aparelho. Agarrou-o e, com dois toques, desbloqueou-o para verificar que estava ligado, que tinha rede, bateria e não estava no silêncio. A confirmação do estado de prontidão do aparelho não o alegrou, pelo contrário, sem saber porquê, deu-lhe a certeza que não seria ela a ligar-lhe.
Largou o telemóvel ao lado do portátil onde escrevia e viu o punho da camisa branca com riscas azuis e a manga azul escura do casaco pousada sobre a secretária. “Eu não tinha este casaco”, afirmou para si, movendo os lábios sem emitir as palavras. “Tinha uma camisa branca, lisa” pensou. Rolou a cadeira para trás e constatou que as calças azuis não eram as mesmas que usara no dia anterior. “Eram as castanhas”, sorriu sem alterar a expressão, “e o casaco era o castanho.”
Esqueceu a manga azul e fixou o sucedâneo de folha branca que brilhava no ecrã. Sorriu. “O papel ficou no casaco de ontem”, acreditou. “Logo ligo-lhe”, decidiu e parou de escrever.


O título do post, "Um Repentino Pensamento Libertador", é o título de um excelente livro de Kjell Askildsen, editado pela Ahab.

Eu gosto de pessoas


Aprender

«Hã? (ou como deixei de escrever no blogue da São)» - AnAndrade

"Somos amigas e ela desafiou-me.
É esta a única razão por, há uns meses atrás, ter aceitado o convite que a minha amiga São Rosas me fez, para escrever no blogue que dirige magistralmente, blogue esse que, como ela bem sabe, não é bem a minha praia. Mas é dela e isso bastar-me-ia.
O blogue da São é um blogue erótico (e, portanto, expressamente anti-pornográfico), onde ela achou que cabiam alguns dos textos que por aqui vão sendo publicados, sobretudo os que focam as relações, os amores, desamores e outros sentimentos. De resto, foi sempre ela quem os escolheu: lia-os, comentava-os e, a seu pedido, lá os publicava eu no A Funda São.
Depois... bom, depois, bastava-me estar atenta aos muitos disparates que iam sendo ditos por lá, com raras e honrosas excepções (mesmo porque, quando nos chateiam a moleirinha, temos tendência para sobrevalorizar a bestialidade e esquecer quem nos acarinha), para começar a ripostar. Porque não me lembro de uma única vez em que não tenha sido sobejamente mal interpretada. Como lhe dizia ontem, quando lhe pedi a demissão, a sensação que sempre tive é que há um qualquer limiar lexical, que eu não transponho, e que os faz ler X onde eu escrevi, claramente (ao menos para mim e para os leitores do Câimbras ou do Persuacção) ABC.
Provavelmente, à boa maneira portuguesa, boçal e preconceituosa, pensa-se que quem escreve num blogue assumidamente erótico anda à procura de qualquer coisa. Eu não andava. E também não me apetecia encontrar ataques pessoais, interpretações e generalizações abusivas, assédios sexuais, incorrecções profissionais e outras enormidades que, maiores do que a minha paciência, me levaram a optar por encontrar-me com a São noutras paragens.
Portanto, para ti, é sempre um até já, São.
Porque és uma senhora como poucas.
E porque é sempre um prazer estar por perto e participar da tua liberdade, mesmo que alguns não a saibam respeitar.
AnAndrade"

26 janeiro 2011

Deixa-te amar

Deixa-te espalhar, pelo vento, pelo ar, voa até a um tempo onde possas descobrir a essência que deste por perdida, a inocência que dizes esquecida mas que te retrata no olhar a menina que nunca te quis abandonar e sempre que ris se manifesta, aproveita aquilo que te resta depois do desperdício que às tantas se tornou num vício que a preguiça te impôs.

Deixa-te flutuar, sem pressa, pela superfície do mar, como se fosses uma mensagem enviada por alguém, embarca numa viagem que te faça bem e aproveita para esqueceres ao longo desse rumo os deveres a que te obrigam os outros, soprados como fumo pelo vento, pelo ar, até um tempo em que conseguias acreditar no amor verdadeiro e te permitias suspirar um dia inteiro a lembrança de um rosto capaz de te fazer sentir feliz, aceita o que te diz quem te recomenda que te deixes ir, espalhada em partículas tão pequenas que ninguém consiga perceber que és tu quem o vento transporta, talvez até à porta de um castelo no passado ou de um refúgio que sintas sagrado no futuro que deves abraçar como o único sentido para onde apontar a tabuleta que sabes trazer inscrita no teu coração adormecido, para onde o vento te levar, a bem contigo e com os outros para poderes distinguir os poucos que te sirvam na difícil tarefa que na verdade terás que aceitar, a felicidade por encontrar e tu parada à espera de uma coincidência afortunada, devagar, quase parada nessa promessa adiada de que tudo se resolverá por si.

Deixa que se apodere de ti uma energia imensa, liberta essa vontade intensa que te quer arrastar, pelo vento, pelo mar, até um momento em que te percebas renascida enquanto mulher com amor pela vida e possas por fim reagrupar tudo aquilo que deixes agora espalhar como semente e que te fará regressar nesse preciso instante à forma original de uma flor exactamente igual àquela que um homem apaixonado terá com a sua mão abraçado com a gentileza devida.


Pouco antes, ou mesmo no momento de te ser oferecida.

Despertares, meu amor, despertar

E só agora, só hoje, eu sei,
entende, que te perdi ao acordar;
mas sabes, meu amor, se eu acordei
foi de tanto me dizeres que estava a sonhar.

E por tudo o que sei que apenas nos sonhei
(e quando só um sonha, meu amor, é distante o despertar)
saberás que, sim, foi sempre em sonho que nos deitei
mas sempre acordei, entre nós, o verbo amar.

Monitor de Estragos

Processamento de emoções discretas, cinto que aperta peitos por baixo da pele.
Supremo todo em corda vibrante paralela. Confusa falta do tronco onde fortes tentáculos envolvem a par do suspiro.
Sim!
Súplica. Maravilha abandonada em areia movediça. Morreu. Transformou-se.
Porta fechada em pranto de agonia fora do espectro da cumplicidade que ninguém entende.
Purgatório.
Processamento de emoções discretas... Torno sádico que aperta a par e passo o que a bigorna não esmagou.
Renascer.

Casa Pia: o volte-face



HenriCartoon

Postalinho do Rui Pato

"Painel publicitário à porta do Jumbo, em Coimbra.
Rui Pato"

Século passado



Webcedário no Facebook

25 janeiro 2011

Tranças de papel

Acho que foi ali que tudo começou. A escola era a primeira, as aulas acabavam e os adultos tardavam, esperava até que ficava sozinha naquele espaço cheio de utopias. Tinha tranças e vestidos de várias cores, a pasta encostada à parede, os minutos passavam e as histórias começavam a chegar, as histórias devem nascer sempre da imaginação e a imaginação deve nascer da distracção que surge do olhar perdido entre pedras e nuvens e dos cheiros bonitos que depois guardamos na memória; os cheiros bonitos da escola devem ser como papel daquele que forra as nossas gavetas com alguma doçura, mesmo que se tenha que ali guardar algo difícil, doloroso, aquele papel está sempre lá e suavizará as cores mais feias. Andava em círculos, o corpo imóvel era incapaz de conter a dimensão dos pensamentos, andava em círculos e os sonhos corriam a bom correr, escrevia histórias no ar que ninguém poderia ler. Gostava daquele tempo de espera, esperava sempre que os adultos se esquecessem de mim ali mais uma hora ou duas, queria muito aqueles momentos para construir os meus castelos. Achavam estranho que eu andasse em círculos, diziam que um dia ainda abria uma cova no chão; os adultos são estranhos quando determinam o que é estranheza, as suas vidas são absolutamente circulares e faz muito que já abriram covas no chão das quais nunca saem ou sequer espreitam para fora. Já não ando em círculos, sento-me para escrever mas sempre que escrevo é ali que tento voltar, à porta da escola, ao sonho guardado pelos minutos que passavam enquanto esperava a mão terna que só não me levava a casa porque eu tinha a casa em mim.