São seres atarefados que correm de um lado para o outro.
Meio mochos, meio formigas.
São sábios e trabalhadores que se deslocam em busca - quase fuga não sabem do quê - de um próximo mundo que pretendem salvar.
Cumprimentam-se de forma estranha, olham-se com a ternura de quem se conhece há muitas vidas e ajudam-se com a vontade de quem quer mudar o mundo.
São mochos nas decisões e no intelecto.
São formigas no trabalho que se predispõem a fazer.
Eles correm de um lado para o outro para fugir da areia movediça que lá fora querem cimentar.
Correm atarefados de um lado para o outro, raramente sem direcção, raramente sem apoio, raramente lembrando a sua própria existência.
21 fevereiro 2011
20 fevereiro 2011
Carta ao Viajante (VII)
Nunca consegui sentir-me uma forasteira, uma estrangeira; em qualquer sítio ou qualquer alma a que eu chegue tenho sempre aquela sensação de familiaridade, de paz de chegar a casa, como se já tivesse habitado, como se antes tivesse pertencido ali; uma lavadeira, uma professora, uma taberneira, alguém que tinha a espada pesada que carrego ainda na mão, parece-me que em todo o lado já vivi. A imaginação é coisa poderosa, entendes do que falo, sim? Vi os teus vídeos todos, estranhamente poderia falar-te de saudades desses sítios, de nostalgia, voltei aqui para te contar.
O feio é apenas um sítio onde o belo se escondeu; tento olhar tudo e até cada um desses esconderijos, sem medo, com medo; não existe feio verdadeiramente feio, até na boca roxa do macabro se contorce a mais singular e musical gargalhada que poderá ser escrita como poesia. Vim aqui para te contar que feio mesmo feio encontra-me quando não consigo escrever; talvez logo à noite consiga, finalmente, após tantos dias, encontrar a solidão antes que a solidão se esgote em mim e me esgote as linhas; é nela que encontro a tinta preta que levo comigo para desenhar momentos, pensamentos, emoções, histórias de outras pessoas. Eu não a quero inteira, só quero um pouco dela e, nestes dias, tem sido o preço que pago, a moeda de troca para tudo o que me chega de novo. Tenho que interromper, novamente; pessoas sempre a entrar e a sair, só tive estes (poucos) minutos. Sempre que me deixem sobrar um pouco que eu possa dar à solidão, voltarei para te contar.
O feio é apenas um sítio onde o belo se escondeu; tento olhar tudo e até cada um desses esconderijos, sem medo, com medo; não existe feio verdadeiramente feio, até na boca roxa do macabro se contorce a mais singular e musical gargalhada que poderá ser escrita como poesia. Vim aqui para te contar que feio mesmo feio encontra-me quando não consigo escrever; talvez logo à noite consiga, finalmente, após tantos dias, encontrar a solidão antes que a solidão se esgote em mim e me esgote as linhas; é nela que encontro a tinta preta que levo comigo para desenhar momentos, pensamentos, emoções, histórias de outras pessoas. Eu não a quero inteira, só quero um pouco dela e, nestes dias, tem sido o preço que pago, a moeda de troca para tudo o que me chega de novo. Tenho que interromper, novamente; pessoas sempre a entrar e a sair, só tive estes (poucos) minutos. Sempre que me deixem sobrar um pouco que eu possa dar à solidão, voltarei para te contar.
«A universalidade do amor» - por Rui Felício
Em frente à sala de estar, tenho um jardim interior envidraçado que, frequentemente, observo pensativo, absorto, só com a suave música de fundo a pautar a minha placidez.
Enterrado no sofá, não dou pelo passar do tempo, deixo correr livremente o pensamento, sem peias, pelas recordações do passado, pelo rotineiro presente, pelas utopias do futuro, pela beleza do que nos rodeia.
Admiro as brilhantes gotículas da chuva a deslizarem, como pérolas, pelas folhas das plantas.
Algumas vezes, como ontem à noite, abro a porta de vidro que dá acesso ao jardim e vagueio no meio daqueles seres vegetais, imperceptivelmente sensíveis, que parecem corresponder e retribuir as carícias que lhes dou com o toque macio dos meus dedos.
Depois vou me deitar, envolvendo-os num olhar de despedida.
Esta manhã, depois de acordar e de ter ido à casa de banho, passei apressado pela sala, antes de ir preparar o pequeno almoço.
Estaquei silencioso, imóvel... Incrédulo! Surpreendido!
Um casal de jovens volteava no sofá!
Agitados, abraçados, fundidos num só, em frenéticos movimentos crescentes, obviamente deliciados, indiferentes ao mundo, no auge de uma orgia de sexo explícito, nem deram pela minha presença.
Devo ter me esquecido de fechar a porta do jardim e permiti com essa distracção, que aqueles jovens invadissem a minha casa.
Dali a pouco, aquelas duas belíssimas borboletas, já saciadas, esvoaçaram lado a lado, em direcção à rua, sacudindo as maravilhosas asas multicoloridas…
Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
19 fevereiro 2011
A Polónia já tem um Museu do Sexo
A partir de agora, está aberto ao público o Museu Erótico de Varsóvia («Muzeum Erotyki w Warszawie»).
O Museu apresenta 2.000 peças de arte erótica de todo o mundo, da colecção particular de Dariusz Kedziora, que começou há 20 anos. Curioso... é o mesmo número de peças que eu tenho na minha colecção (acrescidos, no meu caso, de 1.600 livros)... e que comecei a comprar há 25 anos.
Saliente-se que a Polónia é uma nação com elevado peso da religião católica e o sexo mantém-se um assunto tabu.
A entrada para o Museu custa 30 zloty (cerca de 8 euros), com preço sespeciais para estudantes (que têm as suas necessidades prementes) e idosos (que mantêm as suas necessidades).
Informações obtidas aqui e aqui.
Desatino
Mais um desatino.
Palavras sem sentido
(repito-me, eu sei)
vagas/não vagas.
Existe - tem que existir -
um alimento para a alma;
se existe para o corpo?
Onde está o outro?
Longe....tão longe...
e a vontade de fugir.
Poesia de Paula Raposo
A arte da flatulência apresentada pelo Carlos Car(v)alho
A Arte de Todos os Tempos, Credos e Lugares...
Publicada pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, “A Arte da Flatulência” teve tanto sucesso que o autor - Pierre-Thomas-Nicolas Hurtau - a reeditou várias vezes até à sua morte em 1791. Com o tempo, a dissertação tornou-se um clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis edições e traduções da obra no mundo inteiro.
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que a flatulência tem de dramático é vir lembrar-nos de que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo antes de morrermos. E, contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às sua últimas consequências, pois, no fundo, quer relembrar-nos que, por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras, como qualquer outro animal, e não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, a flatulência é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como fonte de prazer. E até de arte, pois “dar flatulências” não custa, custa é saber dá-las.
Não, “A Arte da Flatulência” não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões por que o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável de a flatulência permanecer hoje uma manifestação desconhecida da generalidade das pessoas como o era no séc XVIII. Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de flatulências, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, sem tirar nem pôr, um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: a Arte de Viver.
Post Sriptum:
Respeitando a sensibilidade dos meus queridos amigos e amigas, optei por não usar a linguagem escatológica da tradução portuguesa, sem que, no essencial, tenha havido alteração do sentido do texto. Em todo o caso, aceita-se a crítica de que o termo utilizado – flatulência - seja pouco preciso quanto ao ponto de saída da dita. Assim e para os que se preocupam com a qualidade da tradução, com a preservação e – por que não dizê-lo? – com a valorização de uma certa linguagem popular, creio que não será difícil repor a pureza das palavras originais, bastando, para tanto, substituir “flatulência” por “peido”. Ipsis Verbis.
(A Arte de dar Peidos - Ensaio teórico-físico e metódico de 1751, de Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut. Editora Orfeu Negro, Novembro de 2010. Texto adaptado)
Carlos Car(v)alho
Publicada pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, “A Arte da Flatulência” teve tanto sucesso que o autor - Pierre-Thomas-Nicolas Hurtau - a reeditou várias vezes até à sua morte em 1791. Com o tempo, a dissertação tornou-se um clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis edições e traduções da obra no mundo inteiro.
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que a flatulência tem de dramático é vir lembrar-nos de que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo antes de morrermos. E, contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às sua últimas consequências, pois, no fundo, quer relembrar-nos que, por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras, como qualquer outro animal, e não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, a flatulência é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como fonte de prazer. E até de arte, pois “dar flatulências” não custa, custa é saber dá-las.
Não, “A Arte da Flatulência” não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões por que o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável de a flatulência permanecer hoje uma manifestação desconhecida da generalidade das pessoas como o era no séc XVIII. Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de flatulências, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, sem tirar nem pôr, um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: a Arte de Viver.
Post Sriptum:
Respeitando a sensibilidade dos meus queridos amigos e amigas, optei por não usar a linguagem escatológica da tradução portuguesa, sem que, no essencial, tenha havido alteração do sentido do texto. Em todo o caso, aceita-se a crítica de que o termo utilizado – flatulência - seja pouco preciso quanto ao ponto de saída da dita. Assim e para os que se preocupam com a qualidade da tradução, com a preservação e – por que não dizê-lo? – com a valorização de uma certa linguagem popular, creio que não será difícil repor a pureza das palavras originais, bastando, para tanto, substituir “flatulência” por “peido”. Ipsis Verbis.
(A Arte de dar Peidos - Ensaio teórico-físico e metódico de 1751, de Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut. Editora Orfeu Negro, Novembro de 2010. Texto adaptado)
*Texto recebido pela net, onde também pesquisei fotos.
Carlos Car(v)alho
18 fevereiro 2011
Extasiado
Mal havia chegado ao átrio do tribunal quando ouviu o seu nome cantado em voz autoritária mas não desprovida de simpatia por uma funcionária judicial. Subiu as escadas em passo acelerado e respondeu prontamente ainda antes de as abandonar. Ouvindo-o, a funcionária interrompeu o nome seguinte, levantou os olhos, acenou ligeiramente com a cabeça na sua direcção e repetiu o seu nome, “Júlio F… A… F…”. Ele confirmou e, sem mais formalidades, ficou assente para todos os devidos e necessários efeitos que ele era ele e estava ali. Então, encostou-se à parede e ouviu a funcionária declamar, sem resultados, os nomes seguintes do rol de testemunhas do processo para o qual havia sido convocado e, contrariado por não estar incluído nas ausências, procurou as pessoas que o levaram a estar ali àquela hora da manhã. Ninguém. Nem testemunhas, nem arguidos, nem ofendidos. Nada. Nenhuma pessoa do “seu” processo; só um advogado.
– Vamos aguardar – declarou a funcionária, olhando para o relógio de pulso e depois para o advogado e para ele.
– Mas faz-se? – perguntou o advogado, aproximando-se da funcionária.
– Em principio não, mas para já não lhe posso garantir. Têm de aguardar – completou, incluindo-o.
O advogado, aproveitando a inclusão, cumprimentou-o, apresentando-se como mandatário do arguido, por quem Júlio ali estava, e seguiu esticando imediatamente a conversa condenando de forma veemente a falta de informação quanto às consequências da greve.
A funcionária ouviu o causídico com um longo encolher de ombros, enquanto Júlio escutava sem opinar, sentindo-se cada vez mais contrariado por estar ali.
– Vamos aguardar – rematou a funcionária no fim do arrazoado do causídico, afastando-se.
Assustado com a perspectiva de ficar sozinho com o advogado, Júlio chamou a funcionária, perguntou-lhe se tinha tempo de ir beber um café e sorriu-lhe agradecido com a resposta positiva. Estava livre, pensou, cruzando acidentalmente o olhar com o do advogado.
– Quer ir tomar um café, doutor? – convidou, sem querer, por mera educação, dirigindo-se ao advogado.
– Pode ser – respondeu o causídico com inesperada convicção e prontidão, que a frase que transcrevo não revela, nem na forma nem no tom, mas que, a bem da verdade, mantenho nos seus precisos termos.
No caminho, curto, entre o tribunal e a pastelaria mais próxima, falaram do tempo e da justiça e de como ambos se encontram cinzentos e pouco recomendáveis. O advogado falava de dias de sol e de tempos mais prazenteiros. “Com outras formas de se fazerem as coisas e em que nos sentíamos melhor. Muito melhor”, sublinhava em tom grave e sério. Desconsolado, Júlio ouvia-o sem balir, balançando a cabeça a compasso.
Já junto à porta da pastelaria, o advogado travou-lhe o passo, tocando-lhe com a mão no braço:
– Vamos antes ali – disse, apontando para um café mais adiante, sem disfarçar a observação atenta e interessada que fazia do interior do estabelecimento que acabava de rejeitar.
– Por mim… – respondeu Júlio, apanhado de surpresa e tentando, debalde, perceber onde o homem fixava o olhar.
O advogado, mantendo um estado de enlevada contemplação do que se passava para lá da montra envidraçada da pastelaria, perguntou-lhe, sem se mover e como se o fizesse para adiar por uns instantes o despegar do nariz do vidro:
– A não ser que se importe. Importa-se?
– Não – assegurou Júlio, encolhendo os ombros. – Por mim é igual, doutor.
E seguiram, o homem conjecturando numa explicação para o sucedido e o advogado, com uma súbita expressão de profundo desalento, recolhendo-se na análise visual das pedras da calçada que a seguir pisava.
Beberam o café e voltaram para a Casa da Justiça, sem trocarem mais do que meia dúzia de palavras de circunstância.
Subiram, souberam que o impasse se mantinha e desceram para fumar um cigarro.
– Se calhar, há bocado ficou a pensar que eu era maluco – disse o advogado, entre duas passas no cigarro.
– Quando? – perguntou Júlio, surpreendido, percebendo, quando se ouviu, que não o havia negado como queria.
– Quando fomos tomar café – esclareceu o advogado. Júlio fez uma careta como se não percebesse. Ele continuou: – Quando lhe disse para irmos mais à frente e fiquei a olhar para a pastelaria como um miúdo para uma loja de doces.
– Ah… – Fingiu Júlio sem muita convicção e, convicto, mentiu: – Não.
O advogado riu-se.
– Não viu, pois não? – perguntou, abrindo um sorriso de quem sabe um segredo.
– Não vi o quê, doutor?
– Não viu – troçou, definitivo. – Se visse, sabia.
– Mas dentro da pastelaria?
O advogado chegou-se a ele e segredou:
– Atrás do balcão está a coisa mais apetitosa que consegue imaginar. – Levou as pontas dos dedos aos lábios e beijou-as ruidosamente. – Um docinho! Uma coisa fantástica!
Júlio hesitou na resposta mas, apreciando os trejeitos e expressões de lúbrica admiração e voraz cobiça que o advogado teatralmente fazia com cómico empenho, decidiu segui-lo:
– Então… – olhou-o com ar sentido. – Então e levou-me para o outro café?
– Aquilo faz-me mal em jejum – justificou o causídico. – É que você não está a ver, nem sequer a imaginar.
– O doutor não me deixou – queixou-se Júlio, forçando-se a dar um tom lamurioso de irreparável decepção que o causídico sentiu e aceitou sem duvidar.
Penalizado e arrependido, o advogado olhou-o sério e declarou solene:
– O problema são as calças.
Júlio, espantado, balbuciou:
– As calças, doutor?
– Sim, senhor, as calças – confirmou o causídico, movendo lentamente a cabeça na vertical, com o ar entendido de quem perdeu tempo a pensar no assunto. – As calças de ganga que a empregada da pastelaria usa, invariavelmente do mesmo modelo e que é, certamente, o que mais a favorece… E favorece muito! – Exclamou com um sorriso matreiro e um piscar de olho a pedir cumplicidade masculina. Aguentou a pausa até o interlocutor sorrir e recomeçou: – As calças que ela usa ajustam e modelam-lhe as nádegas de tal forma… – mordeu o lábio inferior. – Faz-nos acreditar que Deus existe, é verdade, mas é-me tão penoso beber café ao balcão… – arrastou a frase e terminou-a num suspiro teatral. Fez uma careta, abanou a cabeça e concluiu: – Faz-me mal… Muito mal. Tão mal que, às vezes, prefiro nem ver… Fico extasiado… É mesmo, fico extasiado como um parvinho.
– Estava enganado o Camilo – comentou Júlio, sorrindo.
O advogado olhou-o por um momento, apanhado de surpresa mas a processar a informação com crescente alegria, e respondeu, rindo:
– Estava, de facto, estava. É verdade, por vezes, a gente extasia-se! Extasia-se mesmo!
“– A gente não se extasia, minha senhora. Olha.”, de A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco.
– Vamos aguardar – declarou a funcionária, olhando para o relógio de pulso e depois para o advogado e para ele.
– Mas faz-se? – perguntou o advogado, aproximando-se da funcionária.
– Em principio não, mas para já não lhe posso garantir. Têm de aguardar – completou, incluindo-o.
O advogado, aproveitando a inclusão, cumprimentou-o, apresentando-se como mandatário do arguido, por quem Júlio ali estava, e seguiu esticando imediatamente a conversa condenando de forma veemente a falta de informação quanto às consequências da greve.
A funcionária ouviu o causídico com um longo encolher de ombros, enquanto Júlio escutava sem opinar, sentindo-se cada vez mais contrariado por estar ali.
– Vamos aguardar – rematou a funcionária no fim do arrazoado do causídico, afastando-se.
Assustado com a perspectiva de ficar sozinho com o advogado, Júlio chamou a funcionária, perguntou-lhe se tinha tempo de ir beber um café e sorriu-lhe agradecido com a resposta positiva. Estava livre, pensou, cruzando acidentalmente o olhar com o do advogado.
– Quer ir tomar um café, doutor? – convidou, sem querer, por mera educação, dirigindo-se ao advogado.
– Pode ser – respondeu o causídico com inesperada convicção e prontidão, que a frase que transcrevo não revela, nem na forma nem no tom, mas que, a bem da verdade, mantenho nos seus precisos termos.
No caminho, curto, entre o tribunal e a pastelaria mais próxima, falaram do tempo e da justiça e de como ambos se encontram cinzentos e pouco recomendáveis. O advogado falava de dias de sol e de tempos mais prazenteiros. “Com outras formas de se fazerem as coisas e em que nos sentíamos melhor. Muito melhor”, sublinhava em tom grave e sério. Desconsolado, Júlio ouvia-o sem balir, balançando a cabeça a compasso.
Já junto à porta da pastelaria, o advogado travou-lhe o passo, tocando-lhe com a mão no braço:
– Vamos antes ali – disse, apontando para um café mais adiante, sem disfarçar a observação atenta e interessada que fazia do interior do estabelecimento que acabava de rejeitar.
– Por mim… – respondeu Júlio, apanhado de surpresa e tentando, debalde, perceber onde o homem fixava o olhar.
O advogado, mantendo um estado de enlevada contemplação do que se passava para lá da montra envidraçada da pastelaria, perguntou-lhe, sem se mover e como se o fizesse para adiar por uns instantes o despegar do nariz do vidro:
– A não ser que se importe. Importa-se?
– Não – assegurou Júlio, encolhendo os ombros. – Por mim é igual, doutor.
E seguiram, o homem conjecturando numa explicação para o sucedido e o advogado, com uma súbita expressão de profundo desalento, recolhendo-se na análise visual das pedras da calçada que a seguir pisava.
Beberam o café e voltaram para a Casa da Justiça, sem trocarem mais do que meia dúzia de palavras de circunstância.
Subiram, souberam que o impasse se mantinha e desceram para fumar um cigarro.
– Se calhar, há bocado ficou a pensar que eu era maluco – disse o advogado, entre duas passas no cigarro.
– Quando? – perguntou Júlio, surpreendido, percebendo, quando se ouviu, que não o havia negado como queria.
– Quando fomos tomar café – esclareceu o advogado. Júlio fez uma careta como se não percebesse. Ele continuou: – Quando lhe disse para irmos mais à frente e fiquei a olhar para a pastelaria como um miúdo para uma loja de doces.
– Ah… – Fingiu Júlio sem muita convicção e, convicto, mentiu: – Não.
O advogado riu-se.
– Não viu, pois não? – perguntou, abrindo um sorriso de quem sabe um segredo.
– Não vi o quê, doutor?
– Não viu – troçou, definitivo. – Se visse, sabia.
– Mas dentro da pastelaria?
O advogado chegou-se a ele e segredou:
– Atrás do balcão está a coisa mais apetitosa que consegue imaginar. – Levou as pontas dos dedos aos lábios e beijou-as ruidosamente. – Um docinho! Uma coisa fantástica!
Júlio hesitou na resposta mas, apreciando os trejeitos e expressões de lúbrica admiração e voraz cobiça que o advogado teatralmente fazia com cómico empenho, decidiu segui-lo:
– Então… – olhou-o com ar sentido. – Então e levou-me para o outro café?
– Aquilo faz-me mal em jejum – justificou o causídico. – É que você não está a ver, nem sequer a imaginar.
– O doutor não me deixou – queixou-se Júlio, forçando-se a dar um tom lamurioso de irreparável decepção que o causídico sentiu e aceitou sem duvidar.
Penalizado e arrependido, o advogado olhou-o sério e declarou solene:
– O problema são as calças.
Júlio, espantado, balbuciou:
– As calças, doutor?
– Sim, senhor, as calças – confirmou o causídico, movendo lentamente a cabeça na vertical, com o ar entendido de quem perdeu tempo a pensar no assunto. – As calças de ganga que a empregada da pastelaria usa, invariavelmente do mesmo modelo e que é, certamente, o que mais a favorece… E favorece muito! – Exclamou com um sorriso matreiro e um piscar de olho a pedir cumplicidade masculina. Aguentou a pausa até o interlocutor sorrir e recomeçou: – As calças que ela usa ajustam e modelam-lhe as nádegas de tal forma… – mordeu o lábio inferior. – Faz-nos acreditar que Deus existe, é verdade, mas é-me tão penoso beber café ao balcão… – arrastou a frase e terminou-a num suspiro teatral. Fez uma careta, abanou a cabeça e concluiu: – Faz-me mal… Muito mal. Tão mal que, às vezes, prefiro nem ver… Fico extasiado… É mesmo, fico extasiado como um parvinho.
– Estava enganado o Camilo – comentou Júlio, sorrindo.
O advogado olhou-o por um momento, apanhado de surpresa mas a processar a informação com crescente alegria, e respondeu, rindo:
– Estava, de facto, estava. É verdade, por vezes, a gente extasia-se! Extasia-se mesmo!
“– A gente não se extasia, minha senhora. Olha.”, de A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco.
Carta aos Dragões-Poetas
Sob o teu túmulo nada existirá. Se morreste é porque gastaste até ao fim cada milímetro teu.
Porque és daqueles pássaros que desde tenra idade entregam o corpo à alma e a alma à vida e a vida consagram às linhas. Porque te viveste todo, inteiro, incompleto, até ao último grão. Porque lançaste o teu fogo às chamas, as tuas chamas ao fogo, as chamas e o fogo à vida e às páginas amarrotadas, torcidas se te apeteceu torcer; porque voaste para que o olhar pudesse ver do céu e desceste ao centro da Terra para que pudesse ver as quedas e o Mundo de quem se enterra cedo; porque te consumiste sem dó nem piedade da dor nos teus ossos; sob o teu túmulo nada existirá, tudo existiu acima dos teus ossos.
Sob o teu túmulo existirá o vazio, a imensidão do nada que te permitiste sobrar e tudo aquilo que nunca foste. Quando o Outono te trespassar os dias e o peito e te abrir a pele, poderás receber o Inverno de braços abertos na firmeza de quem nunca terminará frio - o frio inveja a noite que escurece o dia, não deseja a Luz - ele há-de-te encontrar fora de ti, muito além de ti, só terminarás nunca porque nunca será quando te terminares; nada de ti será ali, tudo de ti já se foi.
Os que te chorarem como um poema interrompido vão encontrar conforto nos braços sempre quentes das chamas que foste oferecendo; as chamas alimentadas pelo fogo serão eternas; os que não te conheceram chorarão apenas a sua ilusão, vão encostar-se à pedra fria que talvez lhes pareça irmã da vida que conhecem, talvez se apercebam do próprio vazio e o chorem.
Só a palavra pode tudo, não se prende nos impossíveis, não se detém nos limites da existência, não se acorrenta à realidade; a palavra já feriu de morte, já matou, já criou novas vidas, juntou amantes, quebrou paredes ou atravessou-as, saiu de si e voltou a entrar, voou e caminhou sobre as águas, destronou Reis e Rainhas, foi Cupido, Hermes, Vénus, alma, corpo, sede, medo, esperança, força de gigante e utopia; a palavra é um corpo Divino na Terra, único, tem pele de letras e não tem pele, corpo, sequer limites, pode ter e não ter ao mesmo tempo; a palavra é tudo e é nada e o seu poder, a sua magia, a sua força podem ser soberanos. É por isso que és um Dragão, porque escolheste a mais poderosa e mais arriscada de todas as armas, porque a palavra forjada a fogo é espada universal e eterna, é a lâmpada de Aladino, é a Magia de todos os Castelos e Reinos, exige-te a vida única, enche-te de vidas e arranca-te de ti.
Sob o teu túmulo nada existirá; a pedra não te encarcerará; já em vida te desencarceraste e desenterraste de ti.
Porque és daqueles pássaros que desde tenra idade entregam o corpo à alma e a alma à vida e a vida consagram às linhas. Porque te viveste todo, inteiro, incompleto, até ao último grão. Porque lançaste o teu fogo às chamas, as tuas chamas ao fogo, as chamas e o fogo à vida e às páginas amarrotadas, torcidas se te apeteceu torcer; porque voaste para que o olhar pudesse ver do céu e desceste ao centro da Terra para que pudesse ver as quedas e o Mundo de quem se enterra cedo; porque te consumiste sem dó nem piedade da dor nos teus ossos; sob o teu túmulo nada existirá, tudo existiu acima dos teus ossos.
Sob o teu túmulo existirá o vazio, a imensidão do nada que te permitiste sobrar e tudo aquilo que nunca foste. Quando o Outono te trespassar os dias e o peito e te abrir a pele, poderás receber o Inverno de braços abertos na firmeza de quem nunca terminará frio - o frio inveja a noite que escurece o dia, não deseja a Luz - ele há-de-te encontrar fora de ti, muito além de ti, só terminarás nunca porque nunca será quando te terminares; nada de ti será ali, tudo de ti já se foi.
Os que te chorarem como um poema interrompido vão encontrar conforto nos braços sempre quentes das chamas que foste oferecendo; as chamas alimentadas pelo fogo serão eternas; os que não te conheceram chorarão apenas a sua ilusão, vão encostar-se à pedra fria que talvez lhes pareça irmã da vida que conhecem, talvez se apercebam do próprio vazio e o chorem.
Só a palavra pode tudo, não se prende nos impossíveis, não se detém nos limites da existência, não se acorrenta à realidade; a palavra já feriu de morte, já matou, já criou novas vidas, juntou amantes, quebrou paredes ou atravessou-as, saiu de si e voltou a entrar, voou e caminhou sobre as águas, destronou Reis e Rainhas, foi Cupido, Hermes, Vénus, alma, corpo, sede, medo, esperança, força de gigante e utopia; a palavra é um corpo Divino na Terra, único, tem pele de letras e não tem pele, corpo, sequer limites, pode ter e não ter ao mesmo tempo; a palavra é tudo e é nada e o seu poder, a sua magia, a sua força podem ser soberanos. É por isso que és um Dragão, porque escolheste a mais poderosa e mais arriscada de todas as armas, porque a palavra forjada a fogo é espada universal e eterna, é a lâmpada de Aladino, é a Magia de todos os Castelos e Reinos, exige-te a vida única, enche-te de vidas e arranca-te de ti.
Sob o teu túmulo nada existirá; a pedra não te encarcerará; já em vida te desencarceraste e desenterraste de ti.
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