Dona Luxúria passava a maior parte do seu dia infeliz. Estava ardentemente apaixonada pela reencarnação do deus Adónis. Não podia haver homem mais perfeito: aquele corpo esculpido até ao mínimo detalhe, aquele rosto perfeitamente simétrico… Quando ele olhava para ela, com os seus olhos quentes, ela sentia aquela brasa pequenina a crescer até se transformar numa fogueira ardente que consumia o seu corpo de desejo por ele. Porém, ela sabia que ele não olhava verdadeiramente para ela. Porque haveria um Adónis de olhar para ela, tão desinteressante, cheia de celulite, pneus, rosto e cabelos banais?
Dona Luxúria conheceu o seu Adónis no ginásio perto do seu emprego, onde se inscreveu porque estava farta de ser aquela mulher transparente para quem ninguém olha. Queria mudar por fora, pois isso ia ajudá-la a transformar-se por dentro. Ele era um dos personal trainers que ensinava as pessoas qual a melhor forma de esculpirem o seu corpo e ele era o exemplo provado que isso era possível. Raramente era o Adónis que seguia os esforços de Dona Luxúria, pois ele era pago para dar 100% de atenção a outras pessoas e ela, como andava a juntar dinheiro, para aquelas operações que queria fazer ao nariz e aos olhos, para deixar de andar de óculos, ficava apenas a apreciá-lo ao longe.
Uma vez, contudo, ele chegou perto dela para lhe corrigir a má postura, colocando a sua mão forte nas suas costas e ela enrubesceu logo. As chamas começaram a invadir o seu corpo, saindo pelos poros e pelo olhar, transpirando que nem uma porca, pensou ela, envergonhada! Meu Deus, como poderia ela aguentar aulas particulares com ele, sem se atirar descaradamente? Porque sim, ela fantasiava todas as noites com ele! O ginásio vazio, eles sozinhos, consumidos pelo desejo, fazendo spinning lado a lado, braços roçando um no outro, coxas quase em contacto! Depois, deixavam-se finalmente levar e rolavam por cima dos colchões do ioga, indo contra os variados aparelhos de manutenção, até que ela o montava com o mesmo ardor com que pedalava na bicicleta, ritmo cada vez mais acelerado, orgasmo violento como a paixão que sentia por ele!
Dona Luxúria desapareceu do mundo durante três meses, tempo para fazer uma dieta rigorosa, submeter-se às operações, a massagens, a mudar de imagem, pintar o cabelo de loiro, pois odiava o seu ruivo natural! Para disfarçar as sardas, começou a maquilhar-se e a colocar base. Ficou tão diferente que os homens já se viravam na rua para lhe mandar piropos! Alguns até bastante grosseiros mas nem se importava porque agora os homens reparavam nela! E assim deslumbrante, apareceu no ginásio e ficou tudo parado a olhar para aquela mulher fascinante. Só o seu Adónis a reconheceu, olhando para ela chocado!
Chegou-se a ele e convidou-o para sair naquela noite. Para seu grande espanto, ele recusou. Disse-lhe que gostava dela como era antes, com os seus pneus, ruiva e sardenta, que costumava ouvi-la conversar sobre literatura, filosofia, cinema, teatro com outros praticantes e que a admirava, que nunca a tinha convidado a sair porque achava que ela era profunda demais para ele. No entanto, estava enganado, afinal, ela era igual às outras, que só se preocupavam com o aspecto e o exterior e de mulheres dessas estava ele cheio!
E mesmo levando com aquele balde de água fria pelo corpo abaixo, ficou ainda mais ardente pelo seu Adónis que afinal sempre a tinha desejado em segredo! E ela nunca tinha percebido e agora tinha estragado tudo, tudo, tudo! Ficou derrubada como uma árvore depois da tempestade, dias e dias, chorosa, com o aspecto que sempre desejou ter, mas sem dinheiro nem o amor que motivou a mudança.
Uma semana depois, voltou ao cabeleireiro, expulsou a Marilyn Monroe do seu cabelo, a base que encobria as sardas, as pestanas postiças, os decotes avantajados e a minissaia extravagante que mais parecia um cinto largo. Vestiu as suas calças velhas de fato treino e assim, simples, voltou ao ginásio. Estava lá o seu Adónis, sozinho no ginásio vazio. Aproximou-se dela, sorriu-lhe e disse-lhe:
- Vai uma sessão de spinning ao meu lado?
E ela sorriu de volta, com uma sensação de déjà vu…
E ela sorriu de volta, com uma sensação de déjà vu…
Jacky