O Calado, o Estrela, o Serginho e eu, já estávamos em Mira há uns dias no Parque de Campismo, naquele Agosto de 1964. Num casarão da vila pernoitava um grupo de jovens francesas com quem já tínhamos travado conhecimento e que às vezes vinham até à nossa tenda ao final do dia, para conversar, beber uns copos e ouvir umas violadas que o Calado e o Estrela tocavam a acompanhar fados de Coimbra.
Era o prenúncio, o início de futuros namoricos de verão em que a praia de Mira era fértil na época de veraneio.
Na tenda ao lado, que dela parecia fazer sua residência habitual, estava um sujeito carrancudo e triste, talvez dos seus quarenta anos, que nos cumprimentava pela manhã, quase de fugida e com quem nunca chegámos a estabelecer nenhuma aproximação ou contacto mais chegado. Fosse pela sua idade ou pela sua patente timidez, as conversas entre nós resumiam-se aos protocolares bons dias ou boas noites de manhã e ao anoitecer.
De soslaio, às vezes reparávamos como ele nos observava quando as francesas abancavam à entrada da nossa tenda, denotando um ar de pena, ou se calhar de inveja, por não ter a seu lado, como nós tínhamos, uma daquelas miúdas joviais, bem dispostas e bonitas.
No silêncio de certa madrugada, o Calado acordou-nos, fazendo-nos sinal com o dedo junto ao nariz, para não fazermos barulho e escutarmos os ruídos que vinham de dentro da tenda do nosso estranho vizinho.
Ouvíamos a voz cava e rouca sussurrada do homem, em gemidos e palavras ininteligíveis , e, para nosso espanto, uma voz feminina corresponder-lhe com sons guturais, entrecortados por repetidas exclamações de “Je t’aime” e “mon amour”.
Olhámos espantados uns para os outros em silêncio. Nem queríamos acreditar que aquele homem desinteressante, algo antipático e excessivamente tímido e envergonhado estivesse com uma miúda francesa na tenda, aparentemente a fazerem amor! Para mais, naquela época, em que passar além de uns fugazes beijos era quase inconcebível!
A verdade é que o que estávamos a ouvir era indubitavelmente a voz grossa e cheia do homem, que aliás já bem conhecíamos, e a delicada, doce e inconfundível voz feminina de uma mulher jovem. Francesa, por certo, a avaliar pelas interjeições que por vezes conseguíamos identificar.
Ficámos de atalaia até ao alvorecer. Queríamos ver a miúda sair da tenda. Mas qual quê!
O homem saiu, deu-nos os bons dias e foi à sua vida. Quando ele desapareceu por entre o arvoredo, espreitámos e não havia nenhuma mulher dentro da tenda!
Viemos a saber dias mais tarde que o homem actuava em festas de aldeia.
Era ventríloquo e engendrou aquela teatrice para nos fazer crer que também ele era capaz de engatar uma miúda...
Rui Felicio
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