18 junho 2012

«respostas a perguntas inexistentes (202)» - bagaço amarelo

mergulho no mar

Eu costumava passar as tardes na esplanada a beber cervejas e a tentar pôr em dia a leitura. Era essa, aliás, a maior vantagem das férias. De vez em quando ela perguntava-me qual era a história do livro que eu estava a ler, mas eu nunca lhe conseguia responder. Nunca li um livro por causa da história em si, embora ela também me interesse, mas sim por causa daquilo que é indizível e que só quem está a ler é que consegue perceber.
Expliquei-lhe isto, numa das vezes em que fechei as páginas para poder saborear melhor a cerveja, e ela pediu-me para lhe explicar ainda melhor. Não tinha percebido. Para ela, o mais importante de qualquer livro era sempre a história, aquela que se pode resumir depois num vigésimo da duração do tempo que demorou a ser lida. Para mim, o mais importante é sempre saborear cada momento de cada personagem de cada romance. Perceber as suas reacções ao que vai acontecendo e ver ali aquilo que porventura também há em mim. Ou não, claro.
Continuou sem perceber e riu-se. Um riso que, em abono da verdade, me desiludiu. Bebi duma vez toda a cerveja que ainda estava no copo, guardei o livro no saco onde ainda estava a toalha de praia, tão seca e limpa como no princípio das férias, e encostei-me para a frente com os cotovelos em cima da mesa, de forma a aproximar-me o mais possível. Reparei que a pele dela já era um moreno tapete de sal e de Sol, e que ela estava ainda mais bonita do que quando eu a conhecera, um mês antes, e me apaixonara perdidamente. Expliquei-lhe melhor.

- Se continuarmos os dois assim, a história das nossas férias será que eu as passei todas nesta esplanada a beber cerveja e a ler, enquanto tu as passaste a tomar banho na água gelada e agitada do mar, a apanhar Sol sozinha na areia e, de vez em quando, a vir aqui beber uma cerveja comigo nos momentos em que eu interrompia a leitura para desfrutar da tua presença. Essa história, a mim, não me interessa nada.
- Não?! - perguntou ela finalmente interessada no que eu lhe dizia.
- Não. A mim o que me interessará é que, à medida que ia bebendo, ia ficando também mais interessado nos livros que lia, e mais feliz, mas que essa felicidade nunca foi maior do aquela que sentia nos breves momentos em que vinhas fazer-me companhia. Mais ainda, interessa-me também que cada vez que te sentia ir embora, ficava com uma profunda sensação de tristeza apenas pela efémera distância física que crescia entre nós.

Ela não se riu. Só sorriu. Deu-me a mão esquerda, agarrou no meu saco com a direita e puxou-me para a areia.

- Também sinto essa tristeza momentânea, por isso agora vens comigo para a praia. É justo?

Era justo. Foi nesse fim de tarde que dei o meu primeiro mergulho no mar e acho nunca nenhum me soube tão bem.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

O risco de ser homossexual em todo o mundo


Infografia da revista «Visão» de 17 de Maio de 2012

Colegas de cela

Aquele momento no qual você está preso e faz amizades na cadeia mesmo.



Quem nunca?

Capinaremos.com

17 junho 2012

Pedro Laranjeira fala de Naturismo

Pedro Laranjeira no programa "Dispo-me em público", de Fátima Lopes, na SIC, em 2009 (mas sempre actual)

A omissão


Não importam os copos de plásticos a bordejarem-nos os pés para atapetar o Bairro porque a malta está mesmo ali para descontrair à força de vapores etílicos e dar aso ao instinto de comer outro ou outra da mesma espécie conforme o gosto.

Pelo canto do olho o gajo já tinha galado os cus de todas as gajas do grupo e entre mil e uma piadas sobre a faculdade e a falta de trabalho estava agora na inspecção demorada dos parapeitos com mais ou menos carne à mostra consoante fossem adeptas da ticharte a recortar cada centímetro das formas e a mostrar a cor das alças do sutiã ou das túnicas linha império a alçarem as mamas para um enorme decote que as descobre.

Com mais uma cerveja ele começou a gorgolejar ridente que procurava a mulher da sua vida e a mexer nos cabelos da fauna presente até se deter em mim a repetir se já me tinha dito que era gira, muita gira num rebolar das sílabas como marcação de deixa. O gajo era um pão alto e magro com um rabiosque direitinho e escorreito e tão intensamente moreno que até lembrava o Matthew Fox que ninguém em seu perfeito juízo se recusaria a papar não fosse ter interiorizado dos meus paizinhos a tendência para ponderar que ali ao vivo numa farra não lhe lia os erros ortográficos nem as sms com abreviaturas e capas.

Mas como para dar uma voltinha mais não podia exigir puxei-lhe as orelhas para junto da minha boca e perguntei ao meu para não haver equívocos nem omissões se queria cá vir para despejar o vergalho ou se era mais alguma coisinha.


[Foto © Marta Ferreira, 2007,
Unidos pelo sentimento]

«Geometria variável» - por Rui Felício


Sempre foi muito namoradeiro...
Já assim era no Porto onde nascera e vivera até à adolescência, e de igual modo continuou em Coimbra para onde foi morar por ordem do pai que o queria afastar da noite e da borga portuense. Na esperança de o ver assentar e dedicar-se aos estudos. Não era com certeza por acaso que Coimbra era conhecida como a cidade dos estudantes. A cidade onde se estuda…
Hospedou-se no Bairro, lugar pacato de gente humilde e trabalhadora.
Mas o Carlos já trazia a escola tripeira das noites da Foz e da Ribeira, entranhada na alma e no corpo, e rapidamente descobriu que, embora mais pequena, a cidade estava inundada de garotas giras, de espírito livre, que a sua visão de lince ia descobrindo, registando, frechando-as com golpes certeiros do seu olhar romântico e sorriso cativante.
Ao fim de pouco tempo já namorava uma colega do Alexandre Herculano, paredes meias com o São Pedro para onde ele carregava os livros diariamente. Era a Clara, linda rapariga a quem uma imperceptível cicatriz no queixo dava uma beleza invulgar, exótica, sensual.
No fim das aulas, o Carlos acompanhava-a até à Av. Dias da Silva onde ela morava e depois descia os Loios a correr até ao Calhabé.
Não tardou muito que começasse também a namorar a Ângela, que se perdeu de amores por ele num baile do Futebol Clube do Calhabé. Como ela morava na Casa Branca e estudava no Liceu Infanta D. Maria, perto do Estádio, o Carlos conseguia, sem grande risco, repartir-se pelas duas namoradas, dado que elas frequentavam zonas diferentes da cidade.
Alguns amigos avisavam-no que era melhor não manter aquela situação dúplice porque era perigosa e ele podia vir a dar-se mal com isso.
O Carlos era muito senhor do seu nariz e, quando o tentavam aconselhar, respondia com alguma rispidez e sarcasmo:
- Oh pá! Elas são como as rectas paralelas! Por mais que se prolonguem nunca se encontram! Pelo menos é isso que nos ensinam nas aulas de Geometria, não é?…
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Certa noite, abriu com grande pompa uma discoteca nova, moderna, a primeira digna desse nome na cidade de Coimbra. Ficava ali ao fundo das escadas monumentais e encheu-se de estudantes na sua inauguração. O Carlos não podia faltar e lá foi, mais uns amigos do Bairro, beber um copo, ver o ambiente e fumar uma cigarrada.
De súbito, viu a Clara dirigir-se a ele, a abrir caminho por entre a multidão, acotovelando aqui, empurrando acolá. Sorriu-lhe, deu-lhe um beijo, pegou-lhe na mão e explicou:
- Tinha-te dito que não vinha cá, mas o meu irmão insistiu tanto que vim com ele. Tão bom estarmos juntos!
O Carlos afivelou o seu sorriso de galã, mas que se desvaneceu pouco depois tornando-se progressivamente num riso amarelo.
Do fundo da sala, a Ângela acenava-lhe. Veio a correr até junto dele, dizendo-lhe que sabia que ele viria e quis fazer-lhe uma surpresa, vindo com mais umas colegas à inauguração.
- Estás feliz por me veres?
Foi então que a Clara e a Ângela se fitaram e perceberam tudo. Ambas desapareceram, furiosas, cada uma para seu lado, remoendo entre dentes ameaças e vinganças contra ele.
O Carlos recuperou-se a custo, acalmou e afirmou imperturbável para os amigos que o rodeavam:
- Aquilo que nos ensinam nas aulas de geometria está completamente errado! Ao contrário do que nos dizem, as rectas paralelas podem encontrar-se sim! Aliás, consta nos manuais que se encontram no infinito!
- E o nome desta discoteca, como vocês sabem, é esse mesmo: Infinito.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações

Vinho?!



Ricardo - Vida e obra de mim mesmo
(crica na imagem para abrir aumentada numa nova janela)

16 junho 2012

Homens, aprendam a arrefecer um motor de carro sobreaquecido

«coisas que fascinam (143)» - bagaço amarelo

Entrei no comboio em Aveiro em direcção ao Porto, com o objectivo de sair em Espinho. Todos os dias de manhã faço o mesmo. Praticamente de directa, adormeci na terceira ou quarta página do livro que trago comigo. Em Espinho acordei com alguém a abanar-me o ombro. Era uma mulher que eu desconhecia totalmente.

- Vi-o a dormir e sei que costuma sair aqui! - disse.

Agradeci-lhe, atarantado, e saí. Já me tinham acordado várias vezes em paragens terminais, mas nunca numa a meio do trajecto. É fascinante.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Filme de uma ilustração de livro francês de humor

Desenho de Gürsel para o livro «Les blagues coquines».
Este é o filme (em acetato) para impressão.


Um sábado qualquer... - «Revolta»




Um sábado qualquer...

15 junho 2012

FOX Movies - anúncio na Índia

Mundo

Ele viu-a a caminhar lentamente como se tivesse esquecido para onde ia e ficou logo impressionado. Gostou do que viu e do que sentiu. Sorriu. Parou e ficou a vê-la seguir num passo lento mas certo, sem hesitações, nem paragens, como se caminhasse no seu próprio mundo. Enquanto a viu, ela caminhou sem olhar para onde quer que fosse e a cadência lenta com que o fazia fê-lo pensar em alguém que mais do que procurar o caminho se procura a si própria. Reforçou o sorriso pois já tinha bebido e achou graça à ideia de ver uma mulher caminhar uns segundos e achar que ela ia no seu mundo e, ao mesmo tempo, estava à procura de si (si ela, não ele, esclareceu, ainda que tivesse mais graça, pensou, se ela andasse de facto à sua procura, dele, não dela). Também pode ir ter com alguém, conjecturou quando a viu desaparecer duas esquinas mais à frente, mas se for não está como muita vontade. Mais valia vir ter comigo. Riram-se (ele e o álcool).
Na dúvida se não a devia ter abordado, seguiu, ele sim perdido mas não de si, do sítio para onde ir, e tornou a cruzar-se com ela. Andamos perdidos nos mesmos caminhos, eu sabendo-o mas sem os saber, tu sabendo-os mas sem o saber. Deixou-se de trocadilhos etílicos e concentrou-se na esperança que ela fosse para o mesmo sítio que ele. Forçava pensamentos positivos e seguia-a como se pudesse encaminha-la para onde ia, ainda que não soubesse como lá chegar. Riu-se baixinho da figura de idiota que estava a fazer e perdeu-a, enquanto se censurava por não lhe pedir ajuda. Ela conhecia as ruas e ajudava-o a encontrar. Ele queria conhece-la e ajudá-la a encontrar-se mas, quando se decidiu, já não a via. Disse palavrões e entrou num bar, saiu. Não era ali.
Ligou o telemóvel e perguntou o nome do bar. Disse onde estava e seguiu as instruções que lhe iam dando. Cruzou-se com ela e sorriu-lhe mas seguiu as instruções que recebia e continuou. As ruas estreitas do bairro histórico não estavam vazias e, além deles, havia mais gente em trânsito. Achou que ela não o viu. Que ela nunca o viu.
Chegou. O bar estava cheio e a festa animada mas ficou na rua. Esperava tornar a vê-la e decidira falar-lhe. Impreterivelmente. Bebeu e não bebeu mais. Conversou e, por fim, entrou mas mesmo quando estava lá dentro estava lá fora a palmilhar as ruas, a seguir uma gabardina comprida, uns saltos altos vermelhos e uma estranha peruca berrante que ela levava.
Nunca mais a tornou a ver mas gostava. Muito. Gostava de a ver e de lhe falar. De tornar a sentir o que sentiu quando a viu e de poder conhecer o seu mundo.