"O trapézio que se desenhava no chão era muito maior do que a janela por onde o sol entrava, atravessando aquele estúdio numa longa diagonal, testemunho de uma tarde que findava com tons laranja. Ao fundo, na parede mais distante, um longo rolo de papel negro desenrolava-se desde o tecto até ao chão, e depois por alguns metros mais, sob uma cama de alvos lençois e almofadas grandes. Tu estavas sentada, virada para o sol, coberta por um robe branco que havia escorregado pela coxa esquerda, deixando-a a aquecer ao sol. Olhavas-me sem impaciência, mas também sem calor.
Anos antes, mesmo ali naquele espaço, havia sido diferente. Recordo-me como também nessa altura tinhas um robe branco, fino, desapertado. Não tinha sido difícil despir-to, nem o tempo da nudez parecia suficiente, de tanta que era a vontade. Tinhas lançado as tuas mãos ao meu corpo, cruzado os teus pés atrás das minhas costas, estavamos colados na melhor negação do paradoxo de Zenão. Não havia pontos intermédios. Onde o meu corpo terminava, começava o teu. Entre lábios que se mordiam e mãos sem espaço todos os minutos pareceram tão poucos. Impaciência, muita. E um olhar quente. Mesmo sem falar dizias-me que me querias. E continuavas querendo enquanto o sol desaparecia lá longe por entre as árvores, e o espaço outrora luminoso dava lugar a uma penumbra de onde não nos apetecia sair.
Cruzei o meu olhar com o teu no momento em que um clique me dizia que a câmara estava encaixada no tripé. Depois liguei-a e espreitei naquele rectângulo pequeno onde o teu corpo surgia distante, acompanhado de números. Despiste sozinha o robe que ainda te cobria parte da pele e deitaste-te sobre a cama, olhando já não para mim mas para uma lente fria. A luz rápida de um flash, com um barulho agudo, fez-se sentir, e o instantâneo estava feito. Como fatias do tempo. Cada fotografia uma fatia de coisas que nunca voltariam a ser. Foi assim que te vi ir embora, em fatias do tempo, feitas atrás de uma máquina que me escondia e me deixava imagens de algo que eu sabia, já ali, que nunca voltaria a ter."
João
Geografia das Curvas
15 julho 2012
Escolhi esperar
Ricardo - Vida e obra de mim mesmo
(crica na imagem para abrir aumentada numa nova janela)
14 julho 2012
«conversa 1898» - bagaço amarelo
Ela - Não me devias ter telefonado agora.
Eu - Porquê?
Ela - Estou a fazer uma coisa que ninguém pode fazer por mim.
Eu - Estás na casa de banho?
Ela - Não. Estou a dizer mal das amigas todas do meu marido.
Eu - A quem?
Ela - Ao meu marido, claro. Nunca diria mal das amigas dele a mais ninguém. Não tenho mau carácter.
Eu - Estás mesmo?
Ela - Só de algumas, pronto.
Eu - E dizes mal de mim?
Ela - Tu és meu amigo. Ele é que me diz mal de ti, de vez em quando.
Eu - Quando é que te posso ligar, então?
Ela - Daqui a uma horinha, pode ser?
Eu - Uma hora?!
Ela - Sim. Sempre que nos pomos a dizer mal dos amigos do outro, precisamos de pelo menos uma hora.
Eu - E fazem isso regularmente?
Ela - De vez em quando. É uma forma de fortalecer a relação.
Eu - E o teu marido está aí a ouvir a nossa conversa?
Ela - Sim, e já está a dizer que és um chato.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
13 julho 2012
Sem assunto
Ficámos
sem assunto.
Ficámos
sem assunto mas não nos calámos.
Ficámos
sem assunto mas continuámos a falar.
Ficámos
sem assunto, apavorados com o silêncio que nos podia afastar. Separar.
Ficámos
sem assunto mas não queríamos ter de tocar nesse assunto.
A
falta de assunto é um assunto melindroso. Uma mina a crescer debaixo dos nossos
pés, a alastrar para todo o lado, a tomar conta de tudo. A imobilizar-nos totalmente.
A
falta de assunto é uma espécie de doença contagiosa, pensamos, que nos agarra e
não nos larga. Sem cura. Que nos marca e, depois, nos define. A falta de
assunto torna-nos desinteressantes. Silenciosos e transparentes, em risco de
desaparecimento. A comunicação esvai-se e não se retoma. E, no entanto, é no
silêncio que melhor comunicamos, que nos encontramos quando o assunto somos nós.
Quando nós somos um assunto. Um assunto sério.
Se
ficamos sem assunto e lutamos contra isso como se lutássemos pelo ar que
respiramos podemos seguir em frente.
Quando
duas pessoas precisam de assunto para comunicar, não há assunto que lhes valha.
12 julho 2012
«Trinta cadelas ao meu osso» - Patife
Patife
Blog «fode, fode, patife»
Os segredos do caralho
Mote
Os segredos do caralho
Ninguém os pode entender;
Alegre quando tem fome,
Triste depois de comer!
Glosa
De pedreiro oficial
Contratou um casamento,
E guardava (oh! que portento!)
Um estado virginal.
Em a véspera nupcial
Acabou o seu trabalho,
E, à sombra de um carvalho,
Disse, vendo a terna irmã:
– Eu vou saber amanhã
Os segredos do caralho.
Passando a noite ditosa
Desse prazer tão completo,
Que, para o tal arquiteto,
Tinha sido deleitosa,
Deixa um pouco a terna esposa,
Vai da irmã à casa ter;
E, ao vi-lo receber,
Diz-lhe ele baixo à orelha:
– Mana, segredos d'abelha
Ninguém os pode entender.
– É verdade, lhe replica
A irmã, que a foder é destra;
Nem com ser abelha-mestra
Sei os segredos da pica...
Não viste tu como fica
Antes e depois que come?
É uma cousa sem nome!...
Nota bem que não gracejo;
É só o bicho que vejo
Alegre, quando tem fome!
– Reparei, irmã querida,
E fez-me grande impressão
Vir-lhe aquela indigestão
Logo depois da comida!
Cansado da dura lida
Parece que vai morrer;
Embalde tenta se erguer
Porque a fraqueza o tolhe,
E entre os colhões se recolhe,
Triste depois de comer!
Laurindo Rabelo (1826-1864)
Os segredos do caralho
Ninguém os pode entender;
Alegre quando tem fome,
Triste depois de comer!
Glosa
De pedreiro oficial
Contratou um casamento,
E guardava (oh! que portento!)
Um estado virginal.
Em a véspera nupcial
Acabou o seu trabalho,
E, à sombra de um carvalho,
Disse, vendo a terna irmã:
– Eu vou saber amanhã
Os segredos do caralho.
Passando a noite ditosa
Desse prazer tão completo,
Que, para o tal arquiteto,
Tinha sido deleitosa,
Deixa um pouco a terna esposa,
Vai da irmã à casa ter;
E, ao vi-lo receber,
Diz-lhe ele baixo à orelha:
– Mana, segredos d'abelha
Ninguém os pode entender.
– É verdade, lhe replica
A irmã, que a foder é destra;
Nem com ser abelha-mestra
Sei os segredos da pica...
Não viste tu como fica
Antes e depois que come?
É uma cousa sem nome!...
Nota bem que não gracejo;
É só o bicho que vejo
Alegre, quando tem fome!
– Reparei, irmã querida,
E fez-me grande impressão
Vir-lhe aquela indigestão
Logo depois da comida!
Cansado da dura lida
Parece que vai morrer;
Embalde tenta se erguer
Porque a fraqueza o tolhe,
E entre os colhões se recolhe,
Triste depois de comer!
Laurindo Rabelo (1826-1864)
Eric Gill (1882-1940), Most Precious Ornament, 1937 blog A Pérola |
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