26 junho 2013

«Horizonte» - João

"Dizias-me que ias espreitando, acima das águas, de vez em quando. Na praia, longe, estava eu sentado, com a minha fogueira, acesa dia e noite, queimando madeira em labaredas enormes, visíveis a muitos quilómetros da costa. Muitos quilómetros, por oposição a muito poucos milímetros, quando o tempo era outro e as noites mais longas, quando se passava por torres muito altas onde a paisagem era extensa mas invisível, sob um manto de nevoeiro espesso que nos remetia para o escuro e para o silêncio interrompido pela pele contra a pele. Dizias-me que ias espreitando, de vez em quando, só para ver a fogueira. Só para me ver. Um sinal de vida, um sinal do calor, a certeza de uma chama activa. E disseste que me preocupasse quando deixasses de aparecer. Quando deixasses de espreitar, erguendo a cabeça acima das águas, deixando de olhar para a praia, deixando de procurar o meu cheiro no vento.

Enterrados os pés na areia, atiço a chama com um galho próximo, e observo o horizonte, atento, varrendo com o olhar tudo quanto à minha frente se apresenta. E não te tenho visto. Não te tenho ouvido. O vento não tem carregado com ele o teu cheiro. Inquieto-me, afundando os pés da areia fina, achando que chegou o tempo da profecia, o tempo em que devia preocupar-me, como havias dito, que seria mau sinal, que seria da côr das costas voltadas quando deixasses de aparecer no horizonte, quando do meu varrimento resultasse o nada. Deixando o galho chamuscado cair sobre a areia, já envidraçada do calor, talvez fosse, então, de deixar a fogueira esmorecer. Se já não existem sereias nem barcos ao largo para guiar, talvez fosse, talvez seja, de deixar as labaredas cair ao vento, deitá-las para dormir, tirar-lhes, a pouco e pouco, a madeira para queimar, devagarinho, sem pressa, até ficar apenas uma chama-piloto, como nos esquentadores, até que um qualquer olhar acima das águas consiga discernir uma luzinha pequena, acesa, testemunho, ou uma mão rode por fim a torneira que chama a água quente, bem quente, que molhe e escalde, que convide às mãos que ensaboam e traçam, a espuma, caminhos conhecidos, que da água levam à praia e aos lábios mordidos."

João
Geografia das Curvas

Priguntas do Nelo: covas???


Melhéres!

Adevinheim:

Perque quéu nam asho grassa au nóço prezidente?

(quem adevinhar, gánha um broshe, ofressido pelo Nelo)
çe nam adevinhareim, tou ali atrásh do armáirio

«jantar inesperado» - bagaço amarelo

Foi dos encontros mais esquisitos que já tive com uma mulher. Não por causa dela, note-se, mas sim por causa dum amigo meu que estava apaixonadíssimo por ela. Eu nem sequer a conhecia pessoalmente. Apenas tinha ouvido falar bastante dela, através dele.
No trabalho, sempre que fazíamos o mesmo turno, ele não falava doutra coisa. Era a Dora para aqui, a Dora para ali. Enfim, não se calava com a Dora. O problema é que esse amigo meu era bastante tímido e não tinha a coragem de dar o primeiro passo. Eram os dois frequentadores do mesmo ginásio e ele até já ficava à espera que ela chegasse, para poder entrar, de forma disfarçada, mais ou menos ao mesmo tempo. Depois tentava correr numa passadeira perto dela, frequentar as mesmas aulas de exercícios que ela, etc, mas nunca lhe dirigia a palavra. Fora isso, passava o tempo todo do trabalho a falar-me dela.
Um dia lá acabou por ter coragem, penso que por ela lhe ter sorrido timidamente, e aproximou-se para a convidar a jantar fora. Só que na hora da verdade enfraqueceu e acabou por lhe dizer qualquer coisa do género: "tenho um amigo que não conheces, mas que me pediu para te perguntar se aceitas ir jantar com ele". E foi assim que acabei, num sábado ao fim da tarde, num restaurante do Porto à espera duma mulher que nunca tinha visto na vida.
Cheguei primeiro e fui bebendo uma cerveja na mesa reservada para nós. O plano improvisado era, depois do jantar, conseguir levá-la a um bar na Ribeira onde ele estaria. Quando ela se aproximou e me perguntou se eu era eu, admito que senti uma choque na espinha. Era realmente bonita e atraente. Além disso, tinha uma voz que parecia um violino sempre afinado. Tinha os cabelos relativamente curtos e loiros, uns olhos verdes do tamanho do mundo e os lábios ligeiramente sobressaídos. Sentou-se e começou a falar abertamente comigo, com um à vontade espontâneo e sedutor, enquanto eu me encolhia cada vez mais na cadeira e me refugiava nos copos que ia bebendo.
Para além de uma beleza rara, era também capaz de falar de tudo e mais alguma coisa, mesmo daquilo que admitia não conhecer muito bem. Para mim, isso era apaixonante. Acabei por ser um ouvinte durante toda a noite e por esquecer completamente o meu amigo que, entretanto, era suposto estar à minha espera no bar. Não foi uma atitude consciente. Apenas fiquei como que hipnotizado e, quando dei por mim, estava com ela numa discoteca qualquer, penso que em Leça da Palmeira. Só me lembrei dele quando, já a noite ia longa, ela me perguntou por ele.

- Então não chamas o Daniel para vir cá ter? - perguntou.
- Posso chamar... - respondi, já sem saber o que fazer.
- É claro que eu não acredito que o jantar era para ser contigo. Ele é que é um tímido e um trapalhão. Até pensei que vocês tinham um esquema para ele se encontrar comigo depois do jantar...

Acabei por lhe confessar que me tinha esquecido totalmente do meu amigo e que, àquela hora, provavelmente ele estava com vontade de me matar num bar da Ribeira. Peguei no telefone e reparei que tinha uma chamada dele não atendida. Depois telefonei-lhe insistentemente e ele não atendeu. Acabei por desistir e sentir-me um bocado mal com tudo aquilo.
A Dora reparou que eu estava alterado, foi buscar duas cervejas e sentou-se ao meu lado, como que à espera que eu lhe contasse o meu problema. Contei-lhe tudo, incluindo que não sabia como é que ia enfrentar o meu amigo dois dias depois, no trabalho, e dizer-lhe simplesmente: "desculpa lá! esqueci-me completamente de ti no outro dia porque a miúda era mesmo gira e eu perdi a capacidade de raciocínio".

- Não faz mal! - disse ela - A mim tiraste-me duma situação que podia ser embaraçosa, porque eu não gosto dele. Aliás, nem dele nem de ti. Só aceitei jantar para me divertir à vossa custa um bocadinho. Para te ser sincera, eu nem sequer me apaixono por homens. Só por mulheres.

Tive um ataque de riso. Ela também. Nesses tempos acabou por ser uma das minhas melhores amigas, e eu acabei por contar tudo ao Daniel, que no princípio amuou durante algum tempo, mas depois acabou por esquecer o assunto.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Intifoda

Beijos feitos granadas na explosão dos corpos a foder como se estivessem a combater a morte com a sua mais evidente negação.

Feministas...



Via Meus Nervos!

25 junho 2013

Postalinho botânico

"Não sei se conhece a Hydnora Africana, mas tenho a certeza que se não a conhecer vai achar piada a algumas fotos...
Um Abraço
Cláudio Rama"




Eva portuguesa - «Danificada»

Sinto-me quebrada, partida, estragada...
Como se fosse um artigo em segunda mão defeituoso que ninguém vai querer....
Acho que a primeira vez que me senti assim foi quando a minha mãe morreu, tinha eu 11 anos. Todas as amigas diziam: a minha mãe isto, a minha mãe aquilo, vou com a minha mãe,etc... e no dia da mãe?! Sentia-me estranha, envergonhada até, pois não tinha ninguém a quem oferecer nada, uma mãe com quem fizesse planos. A palavra mãe tinha desaparecido do meu vocabulário... e isso fez-me sentir estragada, incompleta, como se tivesse um defeito....
Voltei a sentir-me quebrada quando me divorciei, como se não conseguisse levar uma tarefa até ao fim, senti que falhei, que me desiludi a mim e aos outros... e o facto de os amigos comuns se afastarem ainda aumentou mais a sensação de ser defeituosa... como aquela boneca que deixamos de gostar e mandamos para o fundo do armário ou, pior, deitamos fora....
Voltei a sentir-me um artigo com defeito quando fiquei desempregada a primeira vez... não o previ, não o mereci, não o adivinhava... e mais uma vez senti-me estragada, com defeito...
Em cada relação amorosa, que rapidamente se transformava em desastre amoroso, partia mais um pouquinho de mim, tornava-me mais estragada...
Creio que o culminar de tudo isto foi quando perdi aquele que seria o meu segundo filho no quinto mês de gravidez. Aí sim, senti que tudo em mim se partira, quebrara, estragara... Aí percebi claramente o quão estragada estou...
E, sejamos sinceros, depois de tudo isto e da entrada no mundo da prostituição, quem vai querer (e não me refiro ao sexualmente, mas sim à vida) alguém tão danificado como eu?...


Eva
blog Eva portuguesa - porque o prazer não é pecado

«Sal» - Susana Duarte

saber das lágrimas é saber das grutas
de sal, onde o mar habita, e as mãos se perdem
entre algas, limos, prados marinhos dos olhos
e salinas montanhas de solidão na noite.

as lágrimas são reinos de sol, e de sal,
onde aves marinhas ondeiam círculos de liberdade
e elos de paixão. albatrozes sobrevoam os braços,
e asas de mar salgam a vida. estás onde
as asas se perdem e as escamas vivem.
estás onde o sol aquece as águas e o ventre.
estás onde o albatroz pia e chama o mar em si.
estás onde gotas de água se espalham na noite.
estás onde o mar nos recua as areias da língua,
e onde a língua é sal, e fogo, e água, e mar
da existência. flor de todas as flores de todas
as águas, és a alga viva do meu corpo. as ondas
todas, onde me deito. o sal todo, da minha pele.
és, enfim, o voo de cada movimento, de cada
gota de água, de cada onda deste mar revolto
__________________que sou________________.

Susana Duarte
Blog Terra de Encanto

Casal apanhado

Placa rectangular em bronze com uma cena erótica...


... com detalhes muito curiosos...


... como o quadro na parede:


A partir de agora, ficam apanhados na minha colecção.

24 junho 2013

«Aqua panna» - vê-se que a água faz bem...


Aqua panna from Raphael Kourilsky on Vimeo.

«respostas a perguntas inexistentes (246)» - bagaço amarelo



Às vezes vou a casa duma amiga minha beber uma caneca de chá. Digo-o assim porque, por mais tempo que passe, é sempre para um chá que ela me convida. Seja de manhã, à tarde ou à noite, telefona-me de vez em quando e pergunta-me se quero ir beber chá. Admito que, não sendo um grande adepto dessa bebida, gosto muito do que ela faz e bebo-a com uma dose acrescentada de prazer. Não sei como é que ela faz, mas sei que para além de mergulhar a saqueta com uma planta qualquer na água a ferver, acrescenta ainda mais alguns ingredientes. Canela é um deles.
Há uns tempos, por qualquer motivo, acabou o assunto entre nós assim que ela me deu uma segunda caneca para beber. Eu tinha acabado de lhe dizer que gostava muito do chá dela, especialmente em noites frias como aquela, e ela tinha-me perguntado se eu queria aprender como é que se fazia.

- Não. - Respondi.

Não se sentiu ofendida. Calou-se, tal como eu, e encostou-se para trás no grande sofá da sala. Fez-se silêncio. Bebi todo aquele líquido saboroso em pequenos e delicados goles, para não fazer barulho. Não sei quanto tempo demorei, mas talvez uns quinze ou vinte minutos. O que eu sei é que foram quinze ou vinte minutos de tranquilidade total. Conseguia ouvir o respirar dela e, penso eu, o meu próprio bater do coração.
Depois, quando a caneca chegou ao fim, lá lhe expliquei porque é que não queria aprender a fazer o chá.

- Mesmo que me ensinasses a fazer este chá e mesmo que o conseguisse fazer da mesma forma, nunca ia ser igual. Já me habituei a bebê-lo aqui na tua casa, e é a estes momentos que eu associo este sabor e este conforto.

Ela sorriu. Percebeu, ou fingiu perceber, o que eu lhe tinha dito. Despedi-me e saí passado pouco tempo. No caminho para casa, de mãos nos bolsos e o casaco apertado até ao queixo para me proteger do frio, fui a pensar em como é confortável ter momentos destes. Pensei que nunca na vida conseguiria explicar a alguém a sua importância, até porque dizer que um dos momentos especiais que se tem na vida é quando se vai beber chá a casa duma amiga, pode parecer bizarro.
Foi nessa noite que decidi voltar a brincar com sons e experimentar fazer umas músicas. Estive até às quatro ou cinco da manhã a trabalhar e, assim que acabei, encontrei a minha amiga online no facebook. Mandei-lhe o mp3 por email e perguntei-lhe se ela conseguia ouvir tudo até ao fim.
Esperei uns minutos. Os cinco minutos e três segundos que a música tem e mais um bocado, sempre a olhar para o espaço em branco onde as letras escritas por ela apareceriam supostamente em qualquer altura. Era como se estivesse a olhar para o futuro e ele não quisesse ser presente.
Depois, por fim, ouvi o sinal de que tinha mensagem nova no facebook.

- É esquisita! - escreveu. - mas eu gostava de saber fazer músicas assim.
- Queres que eu te ensine a trabalhar com o software? - Perguntei.
- Não.

Não me explicou porquê.


USDA - Underground Sound Division of Aveiro
No Facebook e no Bandcamp

bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

«Ode às mulheres da vida» - poema de Miguel Torga

"Gatas humanas da rua,
Que poema de Janeiro!
Que epopeia branca e nua
Ao luar do mundo inteiro!

Amam? Não amam? Que importa
Saber mistérios alheios?
A carne pode estar morta
E ter quentura nos seios.

Encolhidas nos portais,
Debruçadas na janelas,
São amantes naturais
Prostitutas e donzelas.

Todas beijam, todas são
Aberta terra em pousio;
Calor de fecundação
Num desespero vazio.

Alguém passa, alguém as quer,
Alguém que é alto e moreno...
Como vai qualquer mulher
Senão assim, a um aceno?

E num quarto e numa cama,
E num lençol de amargura,
Nua e branca, quem é dama,
Ou mulher de vida impura?

Humildes servas de Deus,
Do Deus homem que as chama,
Que humanos versos os seus,
A brilhar na sua lama!"

Miguel Torga
in «Diário III» - Lisboa, 16 de Janeiro de 1946

Protegendo



Quem não se sente mais seguro com um colete salva vidas?

Capinaremos.com