"Gatas humanas da rua,
Que poema de Janeiro!
Que epopeia branca e nua
Ao luar do mundo inteiro!
Amam? Não amam? Que importa
Saber mistérios alheios?
A carne pode estar morta
E ter quentura nos seios.
Encolhidas nos portais,
Debruçadas na janelas,
São amantes naturais
Prostitutas e donzelas.
Todas beijam, todas são
Aberta terra em pousio;
Calor de fecundação
Num desespero vazio.
Alguém passa, alguém as quer,
Alguém que é alto e moreno...
Como vai qualquer mulher
Senão assim, a um aceno?
E num quarto e numa cama,
E num lençol de amargura,
Nua e branca, quem é dama,
Ou mulher de vida impura?
Humildes servas de Deus,
Do Deus homem que as chama,
Que humanos versos os seus,
A brilhar na sua lama!"
Miguel Torga
in «Diário III» - Lisboa, 16 de Janeiro de 1946