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30 agosto 2020

«O poema nasce» - Susana Duarte

talvez o poema só nasça
depois de ter sido escrito na pele,

demorando-se sobre os cílios
e as curvas lentas dos braços

o poema nasce
de uma aurora de sal
(talvez
saibas, então, da ausência)

e das vidas esgotadas
das flores azuis
que enchem prados anónimos.

o poema poderá nascer das raízes
onde, ocultas, se entranham
as inverdades que, no íntimo,
repetimos aos olhos

e, depois, decalcamos
nos poros sedentos,

onde queremos ver escritas
as palavras
húmidas (talvez
as mais raras), da boca

onde, então, calamos
toda a angústia.

Susana Duarte
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23 agosto 2020

«Eis o poema» - Susana Duarte



na pele: eis

o poema

subjugado à eterna demanda
da pele, condensada

em rios de palavras

[onde se preenche
de vida?]



Susana Duarte
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26 julho 2020

«noite ensimesmada» - Susana Duarte

na noite ensimesmada
das bruxas e
das quimeras vivas,
talvez haja um poema

(ou a sede)

por escrever.

talvez uma sombra,
as asas perdidas,
ou o esquálido
e angustiado nó
(deixado vivo nas noites
de outrora)

a agitar a ode marítima
com que me beijavas
a madrugada.

nas noites das quimeras,
vagueiam gárgulas perdidas
onde os nós se desatam,

sedentos, talvez,

de deixar
nas pedras as sombras
originais. eis os nós,
e as pedras.

eis o ser
que se transforma,

e a mulher-rocha das marés.
todas vagueiam,
na imensidão marinha

da procura.

Susana Duarte
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19 julho 2020

«estendes uma ponte» - Susana Duarte

(...)

estendes uma ponte onde a noite
cai serena no tempo
-fantasma-


estrela de pontas ocultas
no fio de um gume
esticado na soturna
e silenciosa

escuridão da árvore
onde crescem hibiscos velhos e

laranjas dormem

Susana Duarte
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12 julho 2020

«vou esquecer os sonhos de ontem» - Susana Duarte

vou esquecer os sonhos de ontem,
como a madrugada desoladora
se despede da noite:

deixando os pés onde os passos
são perdidos, e os corpos
se apartam da pele.

vou esquecer a madrugada
como a ave se despede da primavera:
também eu migrarei

para o lugar do oblívio,
onde me deixas a cada palavra.

Susana Duarte
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05 julho 2020

«colheste-me o sorriso» - Susana Duarte

a antecipação do beijo teve o sabor
das cerejas rubras dos teus lábios.
é nos teus lábios que penso,
quando falo de tardes encantatórias
e do acordar das mãos.

são tuas, as mãos que ladeiam
os lábios e encantam a língua
que, fresca, amanhece
o corpo.

a antecipação do beijo é, ainda,
a manhã clara do teu nome. tem a cor
encarnada da paixão com que soletrei
a chegada do teu sorriso. não sabes ainda
das ondas convulsas que o nome
convoca, nem das águas detidas
no olhar, quando penso em ti.

tu, nascente dos dias descerrada
da pele, escreves na minha boca
o nascer radioso do dia.

raiaste de vermelho o florir do corpo,
apenas porque antecipaste o vôo
das mãos quando, de súbito,

me colheste o sorriso.

Susana Duarte
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28 junho 2020

«da ordem das quimeras» - Susana Duarte

recolhi as palavras
que te tornavam real
sob o toque inacabado
das mãos que me deixaste:
caídas, desamparadas
e cegas. faltavas-me,

mas sugaste os sorrisos,
e os dedos das mãos.
faltavas-me e, todavia
eu sabia que não residias
nas ondas dos meus seios,
ou nas curvas negras dos cabelos
revoltos pelo temporal
da tua presença.

tu, habitante flávio
dos meus dedos, pequeno nada
onde perdi as sombras
das palavras e da boca rubra,
totémica, despojada
que depositei nos teus braços
faltavas-me,
mas recolhi as palavras,
tanto como o corpo por onde,
irados, desenhámos arabescos

que são da ordem das quimeras
e das transumâncias
a que me condenaste
depois.

Susana Duarte
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21 junho 2020

«soubesse eu dos teus dias» - Susana Duarte

sou, das árvores, a intempérie
que nasce onde as flores
fenecem, e as luzes
de uma aurora
desfolhada

[mulher]

onde os dias de antes escrevem
palavras estranhas, raras, justapostas
à sombra onde, esquálidos,
espreitam os teus ossos,
sombra da sombra
do que foste

quando o corpo se erguia
sobre os poros. trago neles o sal
e o suor, as lágrimas e a paixão dos dias.

eram dias de estar só, sem o saber,
acompanhada pelo corpo ausente
com que presenteavas
as noites fingidas
de uma chuva
trazida
pelos dedos.

soubesse eu dos teus dias,
e teriam sido curtas as noites
da água e do movimento milenar
dos braços.

soubesse eu das tuas noites,
e teriam sido esculpidas em água
as curvas que, todavia, te desenhei
nos lábios, urgentes como a vida

que parecias ter

dentro.

Susana Duarte
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14 junho 2020

«sobre as palavras» - Susana Duarte

(caminham
por entre névoas
e sucumbem,
serenas)

sobre as palavras
ciciadas
pelos dedos,

- e por entre as plúmulas
leves dos sonhos -

eis a sombra
antiga
das aves.

escondo, nas palavras
sussurradas

por aves antigas,

o sono leve das águas

(e durmo)

Susana Duarte
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07 junho 2020

«os sons da pele» - Susana Duarte



os sons da pele
sonham mãos
que dançam
(silêncio)

nos cílios
adormecidos
volteiam mãos
(inertes)

as mãos todas
sobre a pele

(outrora)
viva



Susana Duarte
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24 maio 2020

«manhã branca» - Susana Duarte

[manhã branca
dos meus braços]

perguntas quem sou
pergunto quem és

inspiras liriodendros
e vives no ar
da minha sombra.

percorres-me,

aurora branca das manhãs
em que acordo

[manhã branca
de que braços?]

Susana Duarte
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10 maio 2020

«marés de inverno» - Susana Duarte

descobres o vento, e os ramos
agitam-se
por entre os dedos,

como se agitam as auroras
onde os nomes são trevos
ausentes.

descobres os nomes
e não sabes
que os ventos despem
as copas das árvores,

e despem as aves
que as conhecem e nomeiam,

tornando maior, mais aguda
e estranha
a nomeação das flores.

as flores são como os ventos,
partindo-se na dúvida
e na fé- engolem
a sabedoria ancestral

das mulheres, e ocupam-se
das águas de março.
descobrir
os ventos é como reaprender

os nomes dedilhados
pelas ausências,

e sussurrar às algas
o que somos- marinheiros
de nós mesmos,
seres em transumância,
sombras do que nascemos,
esqueletos de uma existência

onde as aves
são entidades
de uma espiritualidade

densa
como as marés
de inverno.

Susana Duarte
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03 maio 2020

«Vácuo» - Susana Duarte

(ouvindo Yann Tiersen, “A secret place”)

nasci dos dias em que os sonhos eram cerejas recém-enrubescidas na verde folha da vida e nas amarelas tardes de ser assim: inocente espaço entre corpos celestes à espera de saber ser flor não naufragada no futuro antecipado na observação das nuvens. nasci
dos dias da aldeia onde sinos eram espaços
sonoros entre mim e mim, entre as nuvens
e a vida, entre a vida e os dias passados
a desfolhar pedaços de vento por entre os medos da infância. ruas calcorreadas no tédio das horas desusadas sobre
as árvores como um ninho, espaço
circunscrito nas horas da angústia
dos Outros das vozes estranhas-intrusas
devoradoras dos tempos ocultos da solidão da interioridade da alma.
lugar secreto de dias celestes
de preenchimento do vazio insuspeito.
passaram os dias da Criação
que nos tornaram metade de nós, corpos
por preencher na mágica sabedoria
da conjunção das vontades.

Susana Duarte
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26 abril 2020

«não sei de ti» - Susana Duarte

procuro as palavras
na penumbra
desmembrada
das aves

e fico parada, a ouvir
as gotas silenciosas

dos sons
dos teus passos,

silenciosos eles mesmos,
ausentes como tu,
e as aves solares.

não sei de ti,
nem das auroras
serenas dos teus braços
sobre mim.

partiste para o lugar oculto
das aves azuis,
onde ficaste
quieto,
absorto,

inerte

como os gatos
que miam às janelas
das mulheres sós.

Susana Duarte
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19 abril 2020

«translúcido» - Susana Duarte

és translúcido,
uma fina camada de nada
sobre a pele.

vives entre a pele e a dor,
navegando o suor
e as noites desenhadas
sobre os dedos, ou
sob a camada fina da alma.

és translúcido,
e deixas desertos de nada
onde outrora pousou
uma borboleta.

a impossibilidade é um oceano
de espuma e algaço,
debicado por uma gaivota
sem uma asa.

Susana Duarte
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12 abril 2020

«sussurro o silêncio» - Susana Duarte

a tua voz ergueu-se
do cinzento dos dias chuvosos

(deixando-me suspensa
nas horas)

suspensa pelas palavras
que não digo,

tornei-me silêncio

sussurro o silêncio
que me percorre,
incapaz de traduzir

o teu nome

Susana Duarte
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05 abril 2020

«assombro» - Susana Duarte

percorre-te um assombro
leve,
passageiro,
como o ar
que inspiras e cuja névoa
atravessa
o pensamento

(dentro de ti,
a navegação
íntima
dos pensamentos,
ar eles próprios,
ar como tu)

percorre-te a veia
da terra
onde tu és tu,

tu que renasces
a cada nota musical,
a cada olhar,
a cada batimento escondido
de um coração

cantor, peito agreste
como as serranias,
olhar terno
como os mistérios.

Susana Duarte
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29 março 2020

«as luzes da noite» - Susana Duarte




as luzes da noite

nunca serão mais
do que apenas olhos

à procura

das geometrias
dos corpos


(pintura de John William Waterhouse)

Susana Duarte
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