19 março 2014

«Saltos Altos» - João


"Chegaste de saltos altos. Na verdade, chegaste como eu gosto de ver. E vieste, julgavas (julgavas?), para a rotina. Um beijo, conversa, um café e talvez um croissant na pastelaria do lado a ver chover na rua. Suspiros, folhados diversos, palmiers a piscar-nos o olho. É terrível ser guloso. Mais ainda, guloso de pele. De cheiro. Sem rodeios, guloso de foda. Com manteiga. E conversas, que se faz tarde, deixamos para depois, enroscados a arder, e vamos de mãos em coxas e centros de gravidade, e perguntas «tiro os sapatos?». Nada disso. E rodando-te de costas para mim, e pernas juntas, entro em ti por trás, apertada mas sem esforço, que pingas, e eu também."
João
Geografia das Curvas

«respostas a perguntas inexistentes (268)» - bagaço amarelo

Pela janela, cujos cortinados brancos e limpos me escondem, vejo uma mulher lá fora. Vai olhando para o relógio como se o tempo lhe começasse a faltar. Talvez esteja à espera de alguém que nunca mais chega. Tem o cabelo ligeiramente ruivo, provavelmente pintado com um produto qualquer comprado num supermercado.
Tudo o resto é paisagem. Era, aliás, nessa paisagem que eu estava a tentar acreditar. É que por ali, entre a aparente solidão de alguns edifícios decrépitos que povoam a estranha cidade de Gaia, sobram alguns sinais dum Amor clandestino. Alguém escreveu numa parede a palavra "Amor", em letras tortas e desproporcionais como se estivesse a gritar.
A Ana entra na sala e traz-me a melhor bebida do mundo, segundo ela mesma uns minutos antes. Um chá que não é apenas um chá. Pousa as canecas e olha-me de frente, sem piscar os olhos e com um sorriso que me parece esconder uma tristeza qualquer.

- Prova! - diz.

Aceno afirmativamente com a cabeça enquanto uma pequena porção de um sabor forte e quente percorre o meu esófago.

- É bom. Muito bom... - confirmo.

A Ana não me quer falar sobre o que o seu sorriso esconde. Conheço-a o suficiente para perceber isso. Se quisesse, o mais provável era nem sequer ter feito chá nenhum. Tinha começado a falar assim que abriu a porta de casa para eu entrar. É mau sinal. Talvez seja grave.
Desvio o olhar do nosso silêncio e digo-lhe que está uma mulher lá fora, à espera de alguém, com um ar anormalmente ansioso. Aparenta ter a minha idade, mais ou menos. É bonita, com aquela beleza que só uma mulher de quarenta e poucos anos consegue ter, mas vai abraçando-se dentro de um casaco comprido como se se quisesse esconder do vento, que é o único ocupante da rua. Ou isso, ou então sabe que alguém a espreita cobardemente por trás duma cortina branca.

- É maluca! - diz a Ana - está sempre ali à espera de alguém que nunca chega. Todos os dias faz o mesmo.

Não tenho muito bem a certeza se posso considerar uma pessoa maluca por estar permanentemente à espera de outra. Na verdade, tanto quanto me já me apercebi, essa é uma das condições essenciais do Amor. Esperar, às vezes sem sequer saber por quem. Dou outro gole, desta vez maior. O meu esófago queixa-se.

- Estou sozinha outra vez.
- Já percebi que sim.
- Como é que percebeste?
- Não sei explicar. Assim que entrei na tua casa percebi isso mesmo. Como é que te sentes?
- Aliviada.

O alívio pode ser triste? Pode esconder-se atrás dum sorriso enquanto se serve um chá a um amigo? Talvez possa. Pelo menos espero que sim. Olho-a nos olhos, com o mesmo espírito de um cientista que espreita pelo microscópio. Num imenso mar azul não vejo muito mais do que alguém que regressa a essa condição de espera.
Lá fora, do outro lado da janela, a paisagem subtraiu a mulher que espera permanentemente.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Yin Yang


18 março 2014

A FODA COMO ELA É (XIII) - Vamos ao circo?



Senhoras e Senhores, Meninos e Meninas!

Bem-vindos ao espectáculo internacional e inter-racial do CIRCO FALÓPIO & EPIDÍDIMO! Temos todo o tipo de perversões e acrobatas!

Seminalis, o domador de cricas feministas, põe-nas dóceis e dilatadas! Veja a orgásmica Arlette Via Verdi sendo sodomizada por quinze (15!) caniches amestrados, bem abonados, em filinha indiana! Conseguirá? Ria-se com os hamstéres trapezistas, equilibrando-se nos grossos pintelhos de Hirsuter, o Mongol Frondoso! Pasme-se com a ilusionista Cindy Parking, que fará desaparecer um autêntico cabaz de Natal pelo cu, enquanto monta um presépio na gruta! Testemunhe verdadeiros momentos de ternura tropical, protagonizados durante o show de elefantes sadomasoquistas! Dê-lhes uma moedinha à tromba, que eles tocar-lhe-ão ao bicho! Formidável! Angustie-se com a demonstração de arte oriental milenar de Saddam Kudasso, o faquir especial que sentará o seu traseiro nu sobre uma floresta de pichas senegalesas em riste! E para a pequenada não faltarão palhaços que agasalhar! Sããããão... PREPÚCIO & ESMEGMA, gargalhadas com humor sobre doenças venéreas e as marionetes de colhões!

É O MAIOR DEBOCHE DO MUNDO!
Tire o soutien, apalpe o anão dos bilhetes e venha assistir ao nosso espectáculo! PARA TODA A FAMÍLIA!

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«Sou» - Susana Duarte

Eu sou aquela que te olha e te vê,
que te olha nos olhos claros e sabe das flores
da noite e dos filmes de Jeunet.
Eu sou aquela que acaricia os dedos das tuas asas e as asas dos teus olhos
e as lágrimas do orvalho que me cai do corpo quando a maré me enche e, em ti, cai,
absoluta como uma maré enluarada e violenta.
Eu sou aquela que, do alto das neves,
sorri perante as asas da águia que voa e plana e rasa no céu dos teus olhos serenos e belos,
eternos como os Noturnos de Chopin.
Eu sou aquela que te perfuma de flores de maçã.
Olho-te nos olhos da fruta e pergunto às mulheres que passam
se apenas de sonho me vesti.
Foi nos teus olhos que me vi.
 Foi na espiral que descias que, a ti, me juntei.
Eu sou aquela que se perde nos labirintos,
onde todavia me achei.
Onde nasci lua prateada perdida escancarada
de desejo de ser Cheia.
Eu sou a tua candeia.
E a noite onde te escondes.
E a voz com que respondes
e me olhas na solidão das estrelas que, de tão belas,
me tolhem da escuridão e levam a fazer a viagem.
És em mim a ramagem de auroras desfolhadas e sonhadas e escritas
num poema, concreto e táctil, onde sou em ti e és em mim.
Loucura de amor.
Loucura de prata escrita numa mata
e nos olhos de um gato que se cruza no branco luar da noite.
Loucura das fadas que nos jogam sobre as asas
os pós de uma magia que, de rosas, se tingiu.
Eu sou aquela que te olha e te vê,
como os mirtilos das noites de Kar Wai Wong.
Como os mirtilos e deixo-te olhar-me.
Mordo-os, sujo-me com eles, e sou feliz de azul-mirtilo-engolido
numa noite onde me olhas e deixas estar assim, sentada,
sobre um sonho de uma noite
onde uma jovem adormeceu sobre o balcão de um café.
E foi beijada.
Queria ser beijada agora,
ainda que fosse uma amora que me tingisse os lábios.
Eu sou aquela que te olha do alto de uma colina
e te vê percorrer o rio com os dedos cobertos de sonhos,
tremendo sob o manto dos medos dos enganos e das feiticeiras.
Eu sou anjo e sou diabo.
Sou mulher em forma de cravo.
Sou aquela que te sabe os recantos de um dedo,
que amo mais do que o dia.
Morreria nesse dedo
e nos toques de um violino que me anima a pele.
Eu sou aquela que te olha e te sabe.
Transparente, como um filme de Jeunet.
Daria a pele para te estar ao pé.



Susana Duarte
Blog Terra de Encanto
"Pescadores de Fosforescências"
Alphabetum Edições Literárias
Dezembro 2012

Relembrando os videos de apresentação da minha colecção - 2 - Carícias ao nosso olhar

Segundo vídeo de apresentação de «a funda São» - colecção (muito) particular de arte erótica, de Setembro de 2011, com mais um poema da Miss Joana Well lido pela voz de ouro de Luís Gaspar (do Estúdio Raposa).
As peças apresentadas fazem parte de um espólio com mais de 3.000 objectos e mais de 1.700 livros com a temática do erotismo e da sexualidade.
A música do genérico é «Sometime Ago», de Bill Evans (do álbum «You must believe in spring»).
A produção e a realização do video são de Joana Moura.

Visita a página da colecção no Facebook (e, já agora, também a minha página pessoal)

17 março 2014

«Femme 101» - curso de anatomia feminina

Parte do filme ProjectEROSion


Femme 101 from Starflower Media on Vimeo.

Luís Gaspar lê «Presságio» de Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,

Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente…

Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse

Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português. É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

«respostas a perguntas inexistentes (267)» - bagaço amarelo

acidente por cima da toalha de mesa

Lembro-me daquele milésimo de segundo da mesma forma que me lembro de algumas histórias que li em criança. Com a mesma intensidade e, acima de tudo, com a mesma duração. Foi um milésimo de segundo que durou várias horas. Na verdade talvez ainda dure. Por isso é que estou a falar dele, apesar de ter nascido e morrido há alguns anos atrás.
Eu estava a pôr a mesa para jantar e a Marta quis ajudar. Foi à cozinha buscar duas peças de cada. Dois pratos, duas facas, dois garfos e dois copos de vinho. Sorrimos um para o outro por um momento e os nossos dedos tocaram-se, por acidente, durante o reposicionamento dos copos. Nos dela não sei, mas nos meus ficou guardada a textura da sua pele. Fechei-os, como se assim a pudesse guardar para sempre

- Se o jantar estiver muito salgado não é grave. Telefonamos para a Telepizza! - ri-me.

Ela também se riu.
Não havia razão nenhuma para estarmos os dois em minha casa à hora de jantar, a não ser uma daquelas coincidências cosmológicas que a vida nos traz, de vez em quando, como prenda. Tinha-a encontrado no dia anterior a respirar solidão, num bar qualquer da baixa da cidade. Por descontrole absoluto inspirara um pouco de mim. Trocámos algumas piadas sem piada e contámos mentiras um ao outro toda a noite. Depois combinámos jantar no dia seguinte. Só isso.

- Está bom. Poupaste o dinheiro duma chamada... - disse ela ainda antes de tocar na primeira garfada.

Os lábios dela eram suaves.
Eu ainda estava a pensar no acidente, aquele em que nossos dedos se encontraram por acaso, um pouco acima da toalha de mesa, como se fossem dois aviões no céu em rota de colisão. A lâmpada de sessenta watts, mesmo por cima de nós, acendera-se pelo mesmo motivo. Um toque, neste caso de alguns fios eléctricos. Estabeleci a comparação como forma de me explicar a mim mesmo, ainda que de forma absurda.

- És tão bonita! - apeteceu-me dizer-lhe.

Mas não disse.
E se de repente fizéssemos Amor? Mas não fizemos.
Talvez, de vez em quando, o melhor seja não fazer aquilo a que o corpo se propõe com tanta vontade. O corpo tem a mania de não ser lúcido e de querer apagar o desejo que o cérebro e o coração precisam. Sem sexo, talvez aquele calor que pulava na ponta dos meus dedos se mantivesse mais tempo ali. Muito tempo. E manteve.

- Uma das coisas que aprendi nesta vida é que o Amor sugere-se como fácil...
- Mas não é, pois não? - Interrompeu ela.

Não.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Não interfira no passado

Pode danificar o futuro.


Se fodeu, garoto.

Capinaremos.com

16 março 2014

Os opcionais é que estragam tudo... ou não...

Cemitério Cross Bones, a última morada das indesejáveis prostitutas londrinas


Em Londres, na zona de Southwark, quem percorrer a pequena Redcross Way não ficará indiferente a um portão totalmente coberto com flores, fitas e outros objectos. Trata-se de um memorial ao desaparecido cemitério de Cross Bones, um local que nos transporta para uma época sombria na qual determinadas mulheres eram exploradas e depois descartadas. À entrada, uma placa em bronze recorda-o: "Aos mortos proscritos. RIP".

Pode parecer estranho, a quem actualmente passa pela Redcross Way, encontrar um portão transformado num memorial à frente de um estaleiro do metropolitano de Londres mas a verdade é que até ao século XIX, este era o local onde os proscritos de Londres eram enterrados, no espírito de uma tradição que se iniciou em plena Idade Média.

Desde cedo, todas as actividades que não eram permitidas dentro das muralhas de Londres desenrolavam-se livremente na margem Sul do Tamisa. Entre tabernas, teatros e cervejarias, encontravam-se por aqui os "Gansos de Winchester", nome pelo qual eram popularmente conhecidas as prostitutas desta zona, que se encontrava sob jurisdição directa do bispo de Winchester. Sempre que alguém contraía uma doença venérea, dizia-se que tinha pele de galinha ("goosebumps") ou ainda que tinha sido mordido por um ganso de Winchester ("bitten by a Winchester goose").

Embora em vida estas mulheres gozassem de alguma protecção por parte das autoridades, quando morriam a coisa mudava de figura. Fosse de causas naturais ou doença (a sífilis era uma causa frequente de morte) o seu enterro em solo consagrado era proibido devido à sua vida considerada pecaminosa. Por esse motivo, as prostitutas começaram a ser enterradas num terreno não consagrado que se viria a tornar o cemitério de Cross Bones. Em 1598 o historiador John Stow escreveu:

"Ouvi da parte de homens idosos de bons créditos, relatos de que a estas mulheres solteiras eram negados os rituais da igreja, desde que continuassem a sua vida pecaminosa, e eram excluídas dos funerais cristãos se não se reconciliassem antes da sua morte. Por isso, havia um lote de terreno chamado adro das mulheres solteiras destinado a elas, longe da igreja paroquial."

Embora o seu estilo de vida fosse pecaminoso, a Igreja acabava por tolerá-las já que contribuíam para que os bons cristãos evitassem práticas ainda mais imorais como a masturbação e a sodomia. Para além disso eram também uma fonte de rendimento já que os bordéis pagavam imposto ao próprio bispo de Winchester.

Com a proibição da prostituição, já no século XVII, o local foi transformado num cemitério para indigentes até ao seu definitivo encerramento em 1853, passando ao esquecimento.



A sua memória foi recuperada quando, já no século XX, as obras de extensão do metropolitano de Londres permitiram recuperar ossadas de 148 indivíduos diferentes, um deles uma mulher que teria entre 16 e 19 anos e cujo crânio denotava os terríveis efeitos da sífilis. Para preservar a memória dos infelizes que aqui foram enterrados, estima-se que cerca de 15.000, especialmente essas malogradas mulheres, a população local transformou o portão num memorial diante do qual, no dia 23 de cada mês, é realizada uma vigília em memória dos Gansos de Winchester.