...para mostrar-me como eu era nabo e ele um machão que se atirava logo à febra...
A porta estava apenas encostada como tinha sido combinado pelo telemóvel.
- Quando estiverem mesmo a chegar, dão-me um toque. Não usem a campaínha, por favor - repetira ela.
Pela nesga entre a porta e a ombreira, um fio de luz quente penetrava as nossas pupilas, já feitas ao escuro após a luz das escadas ter-se apagado ainda antes da entrada no elevador, de modelo antigo, todo aberto e de porta de correr em grade de xadrez .
Vieram-me à mente situações vividas em meros segundos entre o fechar e o voltar a abrir dessas pequenas caixas, quase herméticas, mas neste? Todo aberto entre grades como uma gaiola?
Qualquer momento íntimo e fugaz aqui dificilmente resumiria o segredo a quatro paredes, pensei enquanto a máquina lentamente fazia o seu percurso ascendente.
- Subam até ao terceiro de elevador - terminara ela o telefonema. – o último lance, o quarto andar, só tem acesso por escada e minha porta é a única... -
Entendi que o apartamento seria uma adaptação posterior dum espaço inicialmente não previsto para habitação, mas isso agora não importava.
Viera ali àquele local com o meu amigo de andanças nocturnas após termos passeado os nossos dedos, primeiro em ar de graça, depois já com outra ideia no sentido, pelas páginas de anúncios classificados dos jornais diários.
A mesa cheia de imperiais e uns pires atafulhados de cascas e restos de camarão a par do rosto ensonado do Mário, o dono do Snack Bar, a passear numa primeira passagem a vassoura pelos recantos do recinto, fizeram-nos sair para a noite já fresca de Outono.
- Tenho aqui o telefone da gaja - riu-se triunfante perante o meu olhar ingénuo que dum estafado passo de mágica esperava ver-lhe sair uns rabiscos em algum guardanapo ou recorte de canto de toalha de mesa por entre os dedos.
- Aqui, pá!- disse visivelmente zombeteiro enquanto de telemóvel na mão premia a tecla de chamada.
Não reparara quando é que ele copiara para o seu telefone, um ou mais nomes e números. Possivelmente teria sido quando eu ao balcão fizera contas com o Mário e trocáramos uns dichotes de circunstância.
Passaram largos minutos de conversa fiada e por fim fechou o telemóvel com um convencido:
- Tá no papo, vamos lá agora e nem sequer é longe! –
Apenas por saber que um silêncio oportuno tem muitas vezes mais sabedoria que certas palavras ditas a quente é que não o mandei à merda naquele exacto momento em que, fechado o aparelho, se assumia no papel de grande conquistador. Apetecia-me ter-lhe perguntado onde estava a pica de "ter no papo" alguém que tem um anúncio no jornal onde põe o papo à distância dum telefonema, desejavelmente mais curto e directo do que a estopada a que o meu amigo a sujeitara.
- Telefona tu agora - disse-me, interrompendo o silêncio que se instalara, apenas pontuado pelos passos da nossa caminhada na calçada.
– É já aqui. Assim ela fica familiarizada com a tua voz. -
Entrámos directamente para a sala, onde o fio de luz quente que se escapava para o corredor era afinal o de um pequeno espaço parcamente iluminado e decorado com a combinação mais incrivelmente "kitsh" que alguma vez vira. A um canto duma estante, sem qualquer cuidado com preceitos acústicos, duas pequenas colunas de som, uma sobre a outra e amparadas por um horrível Buda verde em plástico fosforescente, debitavam uma letra dessas onde dor rima sempre com amor, e coração com traição, e que nos soam sempre à mesma música por mais que os diversos e pretensos artistas as chamem suas.
Cantada por um inenarrável duo de além mar, desses que são paradigmas dos clichés do mau gosto que se tornaram moda e criaram escola, serviam de fundo a um trautear com que ela nos recebia a criar ambiente. Disfarçando uma mescla indistinta de cheiros, uma varinha de incenso acabada de acender espalhava um fino fio de fumo rumo ao tecto inclinado.
Só o que falta agora é ela levar-nos para o quarto e ter sobre a cama pendurada a estampa do puto com a lágrima ao canto do olho - pensei eu, enquanto aceitava o convite para me sentar um pouco. Definitivamente e embora se tivesse combinado um menage à trois, o meu amigo estava com mais saída. Talvez por ser mais atiradiço, por ter falado com ela, ou ainda para mostrar-me como eu era nabo e ele um machão que se atirava logo à febra, não perdendo nunca uma oportunidade, enquanto eu para ali ficava em pose de
infelizmência sentado a um canto.
- Só faço com camisinha - riu-se, enquanto desviando o rosto na minha direcção fazia com que a frase tivesse alcance para os dois. Da estante retirou uma caixa de CD que me veio mostrar. – Vou pôr uma coisa melhor, entendes? Mais romântica... Estás a ver? Aqui... Assinado por ele com uma dedicatória. Este comprei-o mesmo no Pavilhão Atlântico no dia do concerto. -
Olhei-a bem enquanto ela fazia a mudança dos discos. Não era propriamente um modelo de beleza , mas a postura, a sensualidade e a luz morna quase vermelha completavam o ambiente propício aos clientes. Já sem blusa, sobressaíia a forma como a lingerie apertava as carnes, fazendo-as sair em balões de chicha rumo ao espaço e à liberdade com a mesma ânsia que as adiposidades à volta da cintura o faziam.
- Vem... - acenou-me em direcção ao quarto, enquanto o meu amigo, de abraço sobre a cintura, lhe premia com gosto as generosidades acumuladas.
Esperei um pouco e levantei-me ainda a tempo de ver uma cama desarrumada, sabe-se lá desde quando. Quase junto a ela, e a ponto de a todo momento lhe cair para cima, os dois entregavam-se ao mister. Ele sôfrego, ela rindo, levantando o pescoço que ele lambia enquanto as mãos mexiam por todo o lado no corpo finalmente nu. Sobre a cabeceira da cama, uma lágrima a sobressair dum rosto de criança enquadrados numa imitação de tela decidiram a minha abalada.
Suavemente, sem fazer um único ruído, pelas escadas para não acordar o elevador.
Já cá em baixo e na rua, após uns passos e mirando ainda para trás lá para o alto, tirei o meu telemóvel.
- Sim, Lena?
- Olá...
- Escuta. Estás só? Queres vir tomar um copo?...-
Charlie