26 março 2010

O desarme (Take II)



HenriCartoon

Encomenda-me uma noite

Um restaurante quase vazio. Fim de almoço. Uma mulher e um homem.

– Mas as coisas são simples.
– Achas?
– São, acabam por poder ser: tu podes-me ter, é só quereres.
– Eu não te quero assim.
– Não?
– Não, assim não.
– Não me queres?
– A questão não está no querer. Eu quero-te. Quero-te ter. Quero beijar-te, sentir a tua pele, o teu calor, o teu cheiro... Sim, na verdade quero tudo isso e quero mais... Quero… Quero dar uma…
– Não digas!
– O quê?
– Isso.
– Mas eu quero-te. Quero-te.
– Não é isso.
– Não? Então é o quê?
– Queca, ias dizer queca. Ias dizer, quero dar uma queca contigo, não ias?
– Ia. Não me soou bem mas ia, pareceu-me que era menos…
– Queca soa-me a favor.
– A favor?
– Sim, a favor. Não gosto. Não gosto da palavra queca. Não me diz nada, queca é a palavra mais assexuada, mais desenxabida, mais desinteressante que há e o acto de dar uma queca é igual. É uma palavra triste e feia.
– É menos forte.
– É menos tudo.
– Posso voltar atrás?
– Podes.
– Eu quero foder contigo. Que me fodas. Que te foda.
– Sim… Então, se me queres, tens-me.
– Eu não te quero assim. E não é o querer, é a circunstância, a forma, o modo.
– Estás a complicar o que não necessita de complicações. Sabes o que faço. Sabes o que sou.
– Sei.
– Sempre soubeste.
– Sim.
– Nunca ficou nada por dizer, nem nada por perceber, pois não?
– Não, foi o que combinámos.
– Queres-me…
– Quero.
– Então, encomenda-me uma noite. Encomenda-me por uma noite e tens-me.
– Não te posso ter assim… Nunca te terei assim.
– Não me queres ter…
– Quero… Quero mas não assim, não te quero a pagar, não te quero comprar. Não quero pagar para ter o teu corpo. Quero ter-te. Quero ter-te inteiro. Quero ter-te como tu me terás a mim, toda!
– Mas… mas…
– Diz! Diz! Diz o que tens a dizer, diz! Não fomos nós que instituímos que nada ficaria por dizer? Que nada omitiríamos um ao outro? Que... Diz! Diz.
– Não digo nada, Carmen. Digo que tudo isto foi um erro. Um estúpido erro que ambos sabíamos que estávamos a cometer. Uma brincadeira de adolescentes que não podíamos ter, que não íamos aguentar.
– Eu aguento. Tanto aguento que estou aqui contigo. E sou eu que tenho coisas a perder. Sou eu que sou casada, Raul, sou eu que tenho marido e filhos e sou eu que estou a almoçar com um acompanhante. Contigo, Raul, contigo.
– Foste tu que quiseste. Foste tu que, sabendo o que eu faço, o que eu sou, te quiseste aproximar de mim. Foste tu que disseste que não ias trair o teu marido, que só me querias conhecer, que me querias conhecer como outra pessoa qualquer.
– E tu quiseste a realidade, a realidade de uma mulher real, de uma mulher diferente das mulheres que te pagam para as foderes…
– Todas as mulheres são reais, Carmen, e se me procuram é porque precisam de mim…
– De ti, do teu corpo, do teu caralho…
– Estás enganada. As mulheres que me pagam precisam que eu as deseje, precisam que eu as queira, precisam que eu, enquanto estamos juntos, me preocupe com elas, com os seus desejos, com os seus gostos e vontades. Precisam do meu sorriso, da minha atenção…
– E que as fodas…
– E que as foda, claro. Que as foda bem, que as foda como não as fodem. É o meu trabalho, Carmen, é o meu trabalho e tu sempre o soubeste.
– Mas nós…
– Não há nós, Carmen. Ou melhor, há nós aqui, nós a tomar café, nós a lanchar, a conversar, a trocar mensagens. Nós a rirmo-nos de nós, nós… mas não há mais nós do que isso. Não há esse nós, não pode haver.
– Não queres que haja.
– Não quero.
– Não queres mas se eu quiser, comp… Encomendo-te por uma noite, não é?
– Não. Agora não. Não ia ser bom para qualquer de nós. Era mais um erro sobre o erro que já cometemos.
– Não me fodias mesmo que eu te pagasse?! Sou assim tão repulsiva?
– Não, não tem nada que ver com isso.
– Não?! Como é que explicas que homem não queira uma mulher?! Como é que explicas que um homem não queira uma mulher que lhe paga para a comer?
– Porque…
– Não digas que é por gostares de mim ou por me respeitares ou… ou o caralho! Não me digas nada, foda-se! Não me digas nada!
– Tenho que dizer, Carmen…
– Eu não me chamo Carmen.
– O quê?!
– Eu não me chamo Carmen.
– Não?!
– Tal como tu não te chamas Raul.
– Não?!
– Chamas-te?
– Raul?
– Sim.
– Não.
– Chamas-te António.
– E tu?
– Eu não.
– Tu não, o quê?
– Não me chamo António.
– Não pensava que te chamasses António.
– Chamo-me Ana.
– Ana?! Ana?! Não te chamas mesmo Carmen?
– Não, chamo-me Ana, Ana Maria.
– Ana Maria?!
– Sim, Ana Maria.
– Ana Maria?!
– E tu, foda-se?! Mas que merda de nome é esse? Achas que Raul é mais macho, é?
– Ana Maria… Raul é o meu nome… é o meu…
– É o teu nome artístico.
– Pois, não gosto de António. Nunca gostei. Nem de Ana Maria, se queres saber.
– Não quero mas já tinha reparado… Uma careta bastava…
– Uma careta?
– Sim, bastava uma, não era preciso fazeres uma careta de cada vez que repetias Ana Maria.
– Eu… Eu não…
– Não interessa… Não interessa nada… Não interessa mesmo nada… Sabes, acho que afinal eu… Afinal eu era, eu sou!, uma mulher como as outras. Uma mulher como todas as outras.
– Eu não acho isso.
– Eu também queria a tua atenção, o teu sorriso. Eu também queria que tu me quisesses, que te lembrasses de mim, que te preocupasses comigo enquanto estás comigo, que tivesses atenção aos meus gostos, aos meus desejos… Sou igual.
– Não és.
– Não?!
– Não.
– Não quis, ou melhor, não quero. Não quero eu também o teu corpo, o teu caralho dentro de mim?... Estúpida! Sabes o que eu sou?
– Não és.
– Sou. Sou estúpida. Sou estúpida e tenho a mania que é o meu cérebro que manda…

Um empregado aproxima-se, todo vénias e mesuras, pede desculpas, pergunta se querem mais alguma coisa, repete as desculpas, agradece a resposta negativa e informa que vai tirar a conta. Afasta-se.

Ela segura na mala, que pousa nas pernas, hesita sem se mover e decide:
– Adeus, Raul. Obrigado.
Ele olha-a, sem reacção, vê-a levantar-se, rodear a mesa, beijá-lo no rosto e despedir-se:
– E obrigado pelo almoço, Raul. Adeus.

Na serra


Passeámos de carro
à procura de um local tranquilo,
suficientemente longe,
para não termos surpresas
desagradáveis
ou encontros fortuitos.

Nos confins da serra,
num caminho de terra
escondidos de olhares,
tratámos de dar largas
à nossa vontade.

A partir daqui
É a vossa imaginação.

Foto e poesia de Paula Raposo

Adormeci...

Adormeci
tenho sonos entre dedos e noites
nas mãos cheias de madrugadas;
adormeci sem ti, madrugadas desoladas
acordei sem ti, madrugadas estremunhadas
dormi em ti, madrugadas sonhadas
ainda sou eu, de estrelas adormecidas.

Adormeci
continuo a dormir num corpo de estrelas cadentes
e nas mãos adormecidas sonho de ti os poemas
acordo em ti, beijas-me a noite que acordas
sonho em ti, acordas-me do sonho que chamas
sonho sem ti, não entendo as palavras desencantadas
ainda és tu, foste tu em todas as vidas.


Safadeza

Cuidado, meninas! Vocês que vão a academia para ficarem saradas, magrinhas e belas, não sabem os perigos que rondam por lá. Ou vocês acham que todos os homens que estão na academia vão lá só para se exercitar?!
Desconfie sempre…


… principalmente de caras com óculos escuros e fazendo abdominais.

Capinaremos.com

O apresentador moderno



HenriCartoon

25 março 2010

Submissão?


A posta sem espinhas

Já aqui abordei em diversas ocasiões as várias costelas de gaja que vou encontrando ou os outros (as outras, queria eu dizer...) descobrem em mim. Sim, cometo uma heresia aos olhos dos machões viris para quem qualquer traço de feminilidade equivale a falta de tesão.
Mas não, precisamente por estar à vontade sabendo que nada tenho a declarar (a murchar?) nessa matéria é que posso dar o corpo ao manifesto sem temer a perda de prestígio junto dos mais preconceituosos do meu género. Ou do outro.
Claro que, mais uma vez, ninguém tem nada a ver com as tais características femininas que me tornam híbrido nalgumas matérias, sobretudo no plano emocional, embora não bastem para me confundir nas escolhas e ainda menos nas horas da verdade que a vida generosa sempre teve o cuidado de me proporcionar.
Todavia, um blogue pessoal deve ser intimista. Pelo menos na minha concepção da coisa, onde só vale a pena um gajo dar a cara sem tema concreto se tiver os tomates necessários para se expor aqui e além às reacções que tanto podem vir dos machões acima citados como das insuspeitas leitoras que por vezes também aí se revelam mais machonas até do que eu...
Tudo isto para vos dizer que sim, tenho no meu carácter de gajo hetero algumas miudezas que várias moças identificaram de imediato como coisas de gaja. É difícil precisar quais são exactamente, pois manifestam-se em situações esporádicas e não são, de todo, racionais mas instintivas. Mas são coisas pequenas, adianto, e em nada (espero) afectam a minha imagem máscula junto do belo sexo e ainda menos (felizmente!) diminuem o entusiasmo que me caracteriza nos contactos mais próximos com essas fontes de vida como as entendo.
Ou seja, mais importante do que a súmula desses pecados de traição à combinação dos cromossomas, detalhes, é a minha forma de os interpretar.
E eu interpreto-os como uma honra e um privilégio, nada menos, precisamente pela ideia que tenho das mulheres e nunca aqui a escondi.
Embora não faltem estafermos sem pila, o padrão que sigo aplica-se à maioria e olho para elas com muito maior admiração do que para eles. E isso nem tem a ver directamente com a minha clara tendência hetero mas sim com o reconhecimento dos factos.
Poucos, mesmo poucos, homens conseguiram impressionar-me como a maioria das mulheres que conheci. São uns básicos, quase todos, e andam a leste do paraíso que elas possuem para explorar (sim, no corpo também...) nas suas mentes complexas e sensibilidades extremadas.
As mulheres, no meu modesto entendimento de mero apreciador do género, são criaturas especiais e diferentes para melhor em tudo o que verdadeiramente interessa.
Podia ter dito isto tudo em dois parágrafos, claro, mas queria certificar-me de que ficam a saber que não só em nada me confrange constatar esses detalhes efeminados no pensar e nas reacções (e na cama também, mas acho que apenas na sensibilidade cutânea e quiçá na desenvoltura linguística), como me orgulho de possuir tais características por me fazerem sentir um pouco mais próximo da perfeição como a concebo.
É disso que se trata. Tinha que o referir, sob pena de ficar com alguma coisa atravessada na garganta. Mas essa experiência, desencantem-se os que me prefeririam ainda mais exposto ao proverbial “eu sabia...” que estas confissões podem suscitar, até hoje nunca vivi.
Tirando uma espinha de safio ou duas, ok...

Inventei...

Inventei
o teu beijo no meu ombro;
sim, ainda procuro
memórias que não inventei
da tua mão no meu cabelo;
no teu colo sosseguei
e inventei
e da minha casa fiz castelo;
sim, inventei esta verdade
para enganar a saudade
de corpo pálido de pesadelo
que no teu rosto acalmei.
Inventei-te
num sussurro de peito aberto,
suspiro pequeno, nu, descoberto
e canoas nos meus olhos
inventam mar nos teus dedos;
não veio a onda e chorei.
Inventei-te
e tanto te esperei,
meu amor, que já nem sei
se apenas te inventei.




A cabeça no ar da Maria de Lurdes teve como resultado que todos os pilotos ficaram na pole-position.

24 março 2010

Chatroulette...

... clerical

Prostituição: carta aberta. Pela recusa da aceitação condicionada. Pela dignidade.

Não existem duas mulheres numa só, a separação entre a mulher e a prostituta é uma fantasia que existe para permitir alguma distância da realidade. Na verdade, quando me dizem que só me estão a ver a mim e não a Joana, que é por mim o afecto, não entendo, não entendo. Porque somos a mesma, não posso deixar uma em casa. Aliás, nem somos a mesma, sou eu e eu sou só uma. Não existe capacidade de extrair o que faço no meu dia a dia de mim, como se fosse um personagem que encarna e que fica separado através de qualquer espécie de exorcismo ou corte. Quantas pessoas já me disseram que querem conhecer a mulher e não a mulher prostituta. Como se eu fosse o que faço e, como tal, duas. Nalguns casos, penso que apenas me estão a tentar explicar, de uma forma um pouco trapalhona - conta a intenção - que, contudo, se entende, que me querem conhecer mas que não pretendem contratar os meus serviços; ainda assim - infelizmente - muitas vezes essa curiosidade tem a ver quase unicamente com o facto de eu ser prostituta, é uma definição de interesse que encaixo entre o voyeurismo, a curiosidade mórbida e uma qualquer espécie estranha de fascínio; ainda nesta categoria, posso encaixar os que pretendem simplesmente seduzir-me recorrendo a clichés que julgam bonitos e atordoantes, como se fossem espécimes extraordinários e sensíveis por serem capazes de - alegadamente - separar a prostituta de mim. Noutros casos, e estes referem-se às pessoas que já me conhecem, trata-se de uma qualquer necessidade de separação que me ultrapassa. Porque serve para nada. Eu continuo a ser eu e a ter a mesma profissão. Tentam que me sinta mais confortável? Não me sinto. Quando me escancaram essa separação, fico apenas intrigada e perplexa. Para quê? Altera quem sou, aquilo que faço? Não, claro que não. Então porquê essa tentativa de separar? Para se distanciarem da prostituta? Para distanciarem a prostituta de vós? Sou eu, sou eu. Sou eu que me prostituo e quem se prostitui sou eu, mulher e pessoa única. Se é por mim, evitem, apenas me faz revirar os olhos. Se é por vós, acreditem que sou só eu, não fica a outra em casa, se vos incomoda: evitem-ME... Transformarem-me em duas e uma ser aquilo que faço para poderem extrair o que não vos agrada ou incomoda, dificilmente se pode confundir com aceitarem-me, com não ter importância a minha actividade, com gostarem de mim como sou. Claro que não tenho qualquer necessidade de vos gritar orgulhosamente a minha profissão como se fosse a bandeira nova do meu País; o que eu grito orgulhosamente é: ACEITO-ME! E tu? Não, não se trata de retórica; trata-se de dignidade. E dignidade é algo que, aqui, se tem que agarrar com os dedos todos; é que, além de ficar mais escorregadia, mais frágil e mais sensível, existe um Mundo de gente que, com ou sem intenção, lhe dá uns puxões.


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Cartas abertas anteriores que podem ser lidas também na revista online FreeZone:
Prostituição: carta aberta e
Prostituição: porta de saída