07 agosto 2011

Consulta no ginecologista

Corpo de madeira

Eu não posso escrever poemas
eu não escrevo poemas
só algumas meras linhas
com algumas, umas poucas, rimas
que formam um corpo inerte
apenas um corpo inerte
como um Geppetto que, por amor,
(só por amor)
molda o seu Pinóquio de fria madeira
e triste, sozinho, espera
que lhe chegue a vida, o calor,
pediu-os, à noite, a uma estrela cadente.
Mais, eu nem sequer posso pedir
vida para o corpo das minhas linhas
não é coisa que se peça, o vosso sentir
ou bem que sentem, ou bem que não sentem
os olhos do peito alheio nunca mentem
e o corpo do meu boneco de madeira,
frio, sem vida, espera
entrar, pelos olhos, num peito
apenas dessa maneira
será vivo e poema completo
o filho destas mãos de Geppetto.

«Nem tudo o que parece é» - por Rui Felício


O Calado, o Estrela, o Serginho e eu, já estávamos em Mira há uns dias no Parque de Campismo, naquele Agosto de 1964. Num casarão da vila pernoitava um grupo de jovens francesas com quem já tínhamos travado conhecimento e que às vezes vinham até à nossa tenda ao final do dia, para conversar, beber uns copos e ouvir umas violadas que o Calado e o Estrela tocavam a acompanhar fados de Coimbra.
Era o prenúncio, o início de futuros namoricos de verão em que a praia de Mira era fértil na época de veraneio.
Na tenda ao lado, que dela parecia fazer sua residência habitual, estava um sujeito carrancudo e triste, talvez dos seus quarenta anos, que nos cumprimentava pela manhã, quase de fugida e com quem nunca chegámos a estabelecer nenhuma aproximação ou contacto mais chegado. Fosse pela sua idade ou pela sua patente timidez, as conversas entre nós resumiam-se aos protocolares bons dias ou boas noites de manhã e ao anoitecer.
De soslaio, às vezes reparávamos como ele nos observava quando as francesas abancavam à entrada da nossa tenda, denotando um ar de pena, ou se calhar de inveja, por não ter a seu lado, como nós tínhamos, uma daquelas miúdas joviais, bem dispostas e bonitas.
No silêncio de certa madrugada, o Calado acordou-nos, fazendo-nos sinal com o dedo junto ao nariz, para não fazermos barulho e escutarmos os ruídos que vinham de dentro da tenda do nosso estranho vizinho.
Ouvíamos a voz cava e rouca sussurrada do homem, em gemidos e palavras ininteligíveis , e, para nosso espanto, uma voz feminina corresponder-lhe com sons guturais, entrecortados por repetidas exclamações de “Je t’aime” e “mon amour”.
Olhámos espantados uns para os outros em silêncio. Nem queríamos acreditar que aquele homem desinteressante, algo antipático e excessivamente tímido e envergonhado estivesse com uma miúda francesa na tenda, aparentemente a fazerem amor! Para mais, naquela época, em que passar além de uns fugazes beijos era quase inconcebível!
A verdade é que o que estávamos a ouvir era indubitavelmente a voz grossa e cheia do homem, que aliás já bem conhecíamos, e a delicada, doce e inconfundível voz feminina de uma mulher jovem. Francesa, por certo, a avaliar pelas interjeições que por vezes conseguíamos identificar.
Ficámos de atalaia até ao alvorecer. Queríamos ver a miúda sair da tenda. Mas qual quê!
O homem saiu, deu-nos os bons dias e foi à sua vida. Quando ele desapareceu por entre o arvoredo, espreitámos e não havia nenhuma mulher dentro da tenda!
Viemos a saber dias mais tarde que o homem actuava em festas de aldeia.
Era ventríloquo e engendrou aquela teatrice para nos fazer crer que também ele era capaz de engatar uma miúda...

Rui Felicio
Blog Encontro de Gerações

Há gajos que nasceram para massacrar

crica para visitares a página John & John de d!o

06 agosto 2011

Anoitecer


Foto: Shark

Deixa que a noite te cubra devagar com a luz pálida do luar que te fascina e por breves instantes oferece-te em silêncio à escuridão que as estrelas suas amantes rompem discretas e tenta ouvir as histórias secretas que a madrugada tem para te contar.

ELEKTRISK GØNNER - «UKNOWHATIWANT»


ELEKTRISK GØNNER - UKNOWHATIWANT from ELEKTRISK GØNNER on Vimeo.

Enquanto

Enquanto dura a loucura
que dure, perdure
e que não se perca por aí.
Enquanto a loucura
dura, firme eu nem um rochedo,
lavem-me as lágrimas,
dispam-me os preconceitos,
acariciem-me.
Enquanto isso dura (a loucura?)
deixem-me um poema
na caixa do correio.

Poesia de Paula Raposo

«O encanto feminino» de Manoel de Sousa Pinto (ca. 1920)

Os livros do Povo - Noções de tudo.
Nº 13 - 5 centavos (50 réis).
8ª secção - arte e literatura.
Estudo sobre a mulher.

Alguns excertos, ao acaso pelas 64 páginas deste pequeno grande livro:
"A mulher é a flor da vida. Cabe-lhe, como à flor, um duplo papel decorativo e oloroso".
"Pode viver-se longe das mulheres e, como ídolos sujeitos a fraquezas, elas só teem, muitas vezes, a lucrar com a falta de assiduidade dos seus devotos."
"Segundo o professor Hallé, a mulher representa a parte nervosa da humanidade e o homem a parte muscular."
"Já alguém a definiu [à mulher] como um regaço servido por órgãos."
"«O dever da mulher é a beleza», disse Renan. Já antes dêle, Chamfort declarara que «as mulheres só precisam de sêr belas»."
"(...) a mulher é «o mais belo defeito da criação»."
"Que deve saber a mulher? Muito? Pouco? Coisa nenhuma? Ruskin respondeu: «quanto baste para compreender o marido»."

05 agosto 2011

A dois tempos


Enfrenta corajosa o frio dos lençóis e aguenta o primeiro arrepio com que podes contar.
Abre os olhos para me veres entrar e abre os braços dessa pele que me reclama, ouve a voz com que ela me chama, sereia, tão perto do ouvido a boca que incendeia tudo aquilo que nos faz nessa altura.
Sente o calor que contraria a madrugada que lá fora está gelada mas o Inverno aqui acabou quando o inferno se instalou entre as pernas com que me envolves agora e o teu corpo já desespera pelo contacto total, a nossa pele em aquecimento global e os lábios arrastados pelo corpo já semeiam beijos como acendalhas numa lareira que vejo reflectida no teu olhar.
Esse brilho que faz prenunciar a entrega do sol nas minhas mãos, esse corpo feitiço que me envolve num abraço que magia alguma consegue reproduzir.
Tudo aquilo que nos fazemos sentir enquanto te toco aqui e além, enquanto me puxas para ti e me dizes vem por entre o som ofegante da tua respiração e eu possuo o teu coração em simultâneo com o resto desse corpo dedicado em exclusivo ao prazer que te dou. Desse rosto iluminado pelo sorriso que me encantou quando me aceitaste, anfitriã, madrugada quase manhã, onde mais me apeteceu porque me dissestesou toda tua.
A verdade toda nua, estampada no grito que ecoou na madrugada quando ambos zarpámos para uma terra distante onde a luz explode em mil cores e o silêncio se pinta de outros tons que são a loucura dos nossos sons misturados na paleta que coloriu os lençóis que agora ensopamos com o amor que transpiramos a dois.
Enfrenta corajosa o calor que agora emana deste forno, desta cama, e aguenta o desafio que te quero lançar.
Abre o peito para me sentires entrar, outra vez, neste leito de um rio que desfez (com a enxurrada pelos nossos corpos libertada) as margens de manobra para quaisquer hesitações e transbordou para os corações e afogou mesmo à beira da foz o medo de enfrentar a tormenta de um mar sem fim, dentro de nós, incontrolável, que é a imagem do futuro de um amor assim, interminável, que requer tanta coragem e um querer muito forte, abraçado ao longo desta viagem à sorte e sem destino traçado, aleatória, predominantemente emocional.
E constrói comigo uma história de amor imensa, tão resistente, tão intensa, que a acreditemos (nos sonhos secretos que alimentamos) necessariamente imortal.

A prostituta azul (XV) - Filhos desiguais

Sou apenas uma rapariga
que gosta de cor-de-rosa
o meu vestido tem a cor da pele
que já não posso despir
porque nesta estranha Terra
os homens que violam os nossos filhos
são filhos de outras mães, mães como nós
mães vestidas de cor-de-rosa
quando embalaram os seus tesouros
Sou apenas uma rapariga
vestida de cor-de-rosa
o meu corpo tem a cor da alma
que já não sei encontrar
porque neste estranho colo
entraram desiguais filhos
de mães sempre iguais
(falo de Mães, não de mães)
e, quero acreditar, talvez estes filhos
não violem outros filhos
se me puderem violar.

Um cu que é uma obra de arte!


Insolente e impúdico, misterioso e exposto, o "Cu da Sé" é um dos ex-libris da Guarda e encontra-se, muito a propósito, nas traseiras da Sé Catedral desta cidade, conhecida como a cidade dos 5 Fs. Virado para o Este, este par de glúteos pétreos é um sinal do secular apreço que as gentes da raia lusitana tinham para com os súbditos de Castela que, da linha do horizonte, espreitavam maliciosamente.


Este cu foi precisamente um dos elementos que o artista guardense Daniel Martins escolheu para integrar o seu projecto "Laboratorium Bento Miguel", onde procura recuperar e incorporar elementos de memória colectiva numa colecção que pretende ao mesmo tempo ser educativa.




Envolvido por uma frase extraída de uma medieva canção de amigo, que a generalidade das opiniões atribui a D. Sancho I, este cu é também ele um traseiro Forte porque resistiu estoicamente ao passar dos séculos, Farto porque se apresenta bem torneado, Frio como a pedra que lhe dá forma, Fiel porque mantém, pelo seu desprezo em relação a Castela, a fidelidade à Pátria Lusa e Formoso porque, diga-se em abono da verdade, é um cuzinho bem jeitoso.


«Aspirina» e o casal de fantasmas sem cabeça