“Sou prostituta, tenho 48 anos de idade, e exerço esta actividade nas ruas da Baixa há cerca de uma dezena de anos. Nasci em Miragaia, no Porto. Dei o primeiro grito numa família abastada. Muito abastada. O meu pai, hoje aposentado, era quadro superior de um banco. Estudei até ao 12.º ano num colégio católico. Não me faltou nada. Fui educada com muito amor e carinho. O problema, talvez maior, é que os meus pais são divorciados. A minha mãe é toxico-dependente e alcoólica. Depois tirei um curso de esteticista, massagista e visagista – assessora de imagem. Exerci na cidade Invicta. Casei cedo e assim me mantive durante 20 anos, até conseguir aguentar a porrada que levava do meu ex-marido e os maus tratos associados. Eu era uma mulher linda! Ainda hoje sou, apesar de estar um pouco estragada. Casei para me libertar do bloqueio da minha família, que nem um cigarro me deixava fumar. Sentia-me asfixiada pelos meus pais. Gostava do meu marido, mas depressa o meu sonho se desvaneceu. Ele comigo fazia pouco sexo, mas ia às prostitutas. Várias vezes apanhei doenças venéreas por causa disso. A nossa existência é muito cruel. Nunca pensei em enveredar por esta vida. Enquanto casada, tantas vezes me ofereceram dinheiro para eu fazer sexo mas eu nunca quis. Era o amor, sabe? Até que tive de fugir dele por não aguentar tanta pancada – pode ter a certeza de que, se calhar, como eu, a maioria das prostitutas que anda por aí foi vítima de violência doméstica.
A vida depois da vida
Então, com, mais ou menos, 38 anos respondi a um anúncio de uma revista e conheci um homem. Ele trouxe-me para Coimbra embalada na esperança de uma vida melhor. Mas quem nasce atrás do sol-posto, com a má-sorte associada, dificilmente verá o astro-rei brilhar. O fulano tinha apenas uma intenção em mente: que eu me prostituísse. E depressa estava a aprender o “bê, à, bá” da mais antiga profissão do mundo. Ele pertencia a uma rede de carne branca com ligações a França e Holanda. Para me libertar dele foi o cabo das tormentas. Mas, nessa altura, ninguém me ajudou. Cheguei a ir pedir ajuda a um vereador da Câmara Municipal, para me arranjar um trabalho, e ele respondeu que eu fosse para o Largo do Paço do Conde. Que era lá o meu lugar – que, curiosamente, é onde estou quase sempre e junta com outras mulheres. Mais tarde apareceu-me um engenheiro de uma instituição do Estado, um chefe de serviço –que ainda hoje lá exerce - que, dizendo que gostava de mim, se revelou um gigolo. Pôs-me a trabalhar na noite. Eu gostava dele, por isso me tornei sua amante. Mas o interesse dele não era o meu amor. Tinha uma forma sub-reptícia, muito subtil, de se bater aos meus ganhos, pedia prendas de grande valor. Nunca me deu nada. E eu tive de aprender à minha custa. Os homens não valem uma merda! É amá-los e fornicá-los! Que é o que faço mesmo! Dão-me prazer, um gozo danado, e ainda me pagam. Quem é aqui o utilizado? São muito estúpidos! Às vezes perguntam-me se eu tenho orgasmo. Tenho sim, filho – respondo. Tenho dois. O primeiro quando me pagas e o segundo quando te vejo a puxar as calças para ires embora.
Um pouco de amor. Please!
Sofro de esquizofrenia bipolar. Tenho de tomar medicamentos para me aguentar. Às vezes pareço zonza –sei lá quantas vezes você, ao passar por mim, assim teria pensado, que eu levava uma broa. Nada disso. Eu não me drogo. Os homens tratam-nos como coisas sem valor. Mas eu tenho sentimentos. Preciso de ser amada, ter um pouco de carinho. E não tenho. Por vezes, quando estou mais em baixo, ligo ao meu pai só para ouvir a sua voz, mas ele não me dá hipótese de continuar a conversa e corta logo: “fala-me em números! Quanto precisas?” – ele nem a minha voz quer ouvir. O meu progenitor, apesar de ter refeito a sua vida com outra mulher, vê em mim a minha mãe – que, quando nova, era muito linda -, na voz, na imagem e em tudo. Nunca superou isso. Ele todos os meses deposita cerca de 200 euros na conta do assistente social que me acompanha. É este técnico que me vai dando o dinheiro ao longo do mês. Estou a viver numa pensão da Baixa – mas não levo para lá clientes.
Escorregar no caminho
Cai-se na prostituição por três motivos. Por expiação – no sentido de expurgar a culpa. Mas que culpa? Por inspiração – há mulheres que gostam mesmo desta vida. E por omissão – entregam-se à actividade sem recalcitrar. Sem se questionarem. Deixam-se ir na corrente.
Isto é também um vício. Às vezes saio à noite para levar um agasalho a uma colega e acabo por ficar. O dinheiro cega-me, sabe? Embora não precise de muito. Por conseguinte, logo que faça 20 euros por dia, com um ou dois clientes, chega-me. Não quero mais! Outras vezes também faço isto por missão. Pode achar inverosímil, mas eu tenho prazer em dar satisfação aos homens.
Esta vida fez de mim uma psicóloga. Olho para qualquer rosto e, sem nunca o ter visto, sou capaz de descrever a pessoa. Habituei-me a ler um homem através da face. Saber ao segundo o que é que ele quer de mim. Trabalho com homens sem taras. Estes indivíduos são perigosos. Tive más experiências. Já fui violada mas não comuniquei à polícia. Ele apontou-me uma pistola, amarrou-me e levou-me para a mata. Sei quem é, mas não quero falar disso. Nem os cães violam as cadelas, porra! Trabalho com viúvos, divorciados e solteiros. Já me propuseram casamento. Outros querem que eu vá viver com eles. Na maioria das vezes, sobretudo os mais velhos, querem-me como companhia. Sou mais virada para o trabalho de acompanhante… popular. Não é acompanhante de luxo! Vêem mais em mim a mulher e menos o objecto sexual. Está a perceber?!
As pessoas da Baixa tratam-me, todos, muito bem. Com muito afecto! Sou simpática, não me drogo e não sou malcriada para ninguém. Faço aqui as compras todas. Se tenho dinheiro pago logo, se não deixam-me levar. Confiam em mim. Sabem que, apesar de ser prostituta, sou séria. Tenho dignidade. Tenho coração. Aqui, dentro do peito bate uma alma. Entende? Sabem o que eu faço. Não ando mascarada. Sabem que tenho uma filha que é médica e um rapaz que é economista – os meus rebentos sabem muito bem o que faço. Dizem que a escolha é minha, é uma opção de vida, e não têm nada a ver com isso. São uns queridos, os meus filhos, não são?
Acabei a gostar desta vida. É uma forma de libertação. O patrão não bate e a patroa não ralha.
Não espero nada da vida! Não tenho ilusões. O amor é uma utopia!"
A vida num cartão
Anda sempre acompanhada com um cartão de vacinas que ostenta no cabeçalho “Cartão Controlo do GAT-UP-REDUZ”. Este serviço está sediado no Terreiro da Erva. É com ele que vai requisitar preservativos. “São muito bons para mim e para outras como eu - enfatiza. Se não fossem estas instituições o que haveria de ser de nós? Levam-nos ao hospital para fazer exames de três em três meses. Olhe aqui a data! Fiz há dias análises ao sangue. Faço amiúde vezes rastreio contra o HIV, Hepatite, Cancro do útero e da mama, e Sífilis. A maioria dos clientes nem sabe disto. Pouca gente sabe. Mas quando a polícia nos identifica pede sempre este cartão de vacinas. Você também não sabia, pois não?”
(Todo este impressionante depoimento é real)
Luís Fernandes
Blog «Questões Nacionais»