A Márcia diz-me isto, assim com um misto de ternura e de aviso. Há poucos minutos ouvi a voz dela escondida na chuva. Tinha os sapatos encharcados de tanto caminhar sem me desviar das poças de água. Procurei-a entre o pequeno grupo de mulheres que esperavam, no alpendre de um edifício velho, que as nuvens se cansassem e agora estou aqui, com ela ao alto a dizer-me que estou com um ar cansado.
Na verdade, foi também o que pensei quando a vi. Há dez anos, pelo menos, que não sabia nada dela. Parece que entretanto o vento lhe provocou alguma erosão na face, da mesma forma que o faz nas montanhas de pedra que se tentam manter em pé junto ao mar. Levou-lhe os sorrisos e o brilho de que me lembro. Deixou-lhe a beleza, mas entristeceu-a.
- Estás bonita.
E ela sorri encolhendo o sorriso, como se o quisesse engolir e não fosse capaz. Estou tão molhado e desconfortável que me apetece deitar no sorriso dela. Imagino-a a tapar-me com ele e a fazer-me uma festa na testa. Já não tenho a certeza, mas acho que foi assim que ela se despediu de mim a última vez.
- Talvez um dia eu volte...
Não voltou.
Os nossos olhares já se cruzaram algumas vezes, mas ainda não se fixaram um no outro. Parecem borboletas bêbadas a voar sem lógica. Tenho dúvidas que ela se lembre do que me disse quando me deixou e não me parece que a deva lembrar. O que eu sei é que são os Amores que terminam que me cansam, que me fazem andar à chuva sem me preocupar com as poças de água e, agora que penso nisso, o grupo de mulheres que se abriga neste alpendre aumentou. No passeio mais ou menos movimentado apenas homens andam à chuva. Talvez seja isso... talvez sejam sempre as mulheres a despedirem-se dos homens e a cansá-los assim.
- Só as mulheres é que se protegem da chuva?
Sorrio. Ela também, mas desta vez conseguiu engolir o sorriso.
Qualquer Amor, por curto que seja, é uma escultura que se ergue na nossa memória para sempre. De vez em quando, ao passearmos pelos dias que já passaram, paramos para a ver e ficamos a admirá-la. Como em qualquer obra de arte, descobrimos sempre um pormenor novo. Talvez seja mesmo isso. Todas as histórias de Amor são uma obra de arte.
- Parece que tens razão. Só as mulheres é que se protegem da chuva...
O que me apetece é abraçá-la. Os dois beijos que lhe dei souberam-me a quase nada. Acho que num deles nem sequer nos tocámos. Foda-se lá para o tempo que passa, para o fim dos Amores e para as mulheres que se abrigam da chuva.
Entre os homens há uma que passa e não se abriga. Leva um grande guarda-chuva amarelo com uma marca de uísque impressa. Não lhe vejo a face, mas sigo-a até desaparecer na primeira esquina.
- Vamos beber um galão quente e comer uma torrada cheia de manteiga?
Ela responde que sim apenas com a cabeça. Acho que o Inverno serve para isto mesmo, para nos sentirmos desconfortáveis sozinhos e nos lembrarmos que precisamos de alguém. Mesmo que não chegue para voltarmos um para o outro, que chegue para leite com café e pão torrado.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»