12 janeiro 2010
Inverso
Saberia o caminho
-como assim?-
por onde iria;
pensava que sabia
(ela)
e foi muito decidida.
Passaram anos
(sobre o caminho)
e ela concluiu:
se tivesse que o percorrer
-novamente-,
fá-lo-ia sempre
(o caminho),
no sentido inverso.
Foto e poesia de Paula Raposo
Conto das máscaras (V) - Acusações (II)
Habituaste-te à comodidade do aparente alheamento. O que sei eu? Quantas vezes o que começa por ser uma máscara deliberada, premeditada, se cola à pele do rosto e nos transforma o corpo em marionete? Não sei. Porque assim te suga o alheamento; é como adormecer, sabes que tens sono, depois adormeces e então não sabes que estás a dormir. Talvez uma suave percepção, raramente, se o sonho for muito estranho - mas o mundo é sempre um sonho estranho. E consegues acordar, quando percebes e quando queres? Talvez não exista a palavra amor para entregar mas, talvez, só talvez, contigo o sono fosse um pouco menos profundo. Talvez fosse. (E dispensou o amante)...
11 janeiro 2010
Um ano do Katano
O Katano é que sabe fazer revistas do ano que passou. Já publicou as partes 1 e 2.
De uma forma perfeitamente aleatória e sorteada na presença do governador civil do Sétimo Céu, respigámos (palavra linda...) este excerto:
"Junho, e 2009 já agora, também seria seria marcado pelo evento que veio alterar irremediavelmente o meio literário nacional: a publicação da obra de vulto, o DiciOrdinário Ilustarado. Eça é que é Eça!"
Quem ainda não tem um exemplar do DiciOrdinário Ilustarado (que pode ser comprado aqui) não sabe o que está a perder (e a ganhar, com o que poupa do preço do livro, verdade seja dita).
O quarto conto: checkpoint
A camisola esgaçada do lado esquerdo. Era a mesma de ontem e de anteontem. Não interessava. Talvez as aves de rapina já nem distinguissem a sua pele de qualquer outro tecido morto e tivessem começado a bicar por ali. Talvez preferissem bicar a camisola porque o seu sangue era apenas a cinza dele misturada em suor, um líquido pastoso que, bombeado em esforço, enchia a cavidade do coração de um tom negro. Não interessava. As mãos da noite nunca mais no cabelo. Nada interessava. O dedo do amante apontado a acordá-la para a verdade. Não interessava. Amantes em fila. De todas as cores e sabores. Quando o corpo doía do sexo amorfo, outra dor maior era camuflada por instantes. Por instantes. Uma dor na carne. Instantes de vida. Devorou os homens que fecharam o caixão. Podiam ter ainda partículas nos dedos. Vingou-se, assim, na luxúria deles frustrada por tanta frieza. Enlouqueceu. Dedos acusatórios. Mãos da noite nunca mais nos cabelos...
O erotismo no meio das tragédias
É curioso que um livro intitulado «Didon, Tragedie», publicado em 1747 (sim, sim, há mais de 250 anos!) tenha, depois de 94 páginas de tragédia e antes das páginas finais com mais uma tragédia («Adelaide de Hongrie»), um pequeno oásis de 46 páginas com um poema erótico em quatro cantos - «Les oiseaux chéris, ou la fidélité récompensée» - precedido de umas «réflexions sur la poésie érotique».
Mas o erotismo é, também, isso: um oásis no meio de tragédias.
Mais um livrinho da minha colecção.
Mas o erotismo é, também, isso: um oásis no meio de tragédias.
Mais um livrinho da minha colecção.
10 janeiro 2010
Janeiras, ainda...
(À São, essa alma impoluta, que me entendeu uma ausência e a quem nunca eu daria uma nega...)
não fui cantar as Janeiras
meu amor porque não pude
fiquei-me pelas lareiras
aquecendo uma atitude
mas hei-de ir um destes dias
mais quente de cima abaixo
se tu me deres garantias
de me achares tu como eu te acho
que Janeiras bem cantadas
são um manto de emoções
neve hão-de ter nas estradas
mas aquecem corações
e ao dares de ti dó de peito
junto a mim no teu cantar
havemos de dar um jeito
do dó em sol se tornar
não fui cantar as Janeiras
meu amor porque não pude
fiquei-me pelas lareiras
aquecendo uma atitude
mas hei-de ir um destes dias
mais quente de cima abaixo
se tu me deres garantias
de me achares tu como eu te acho
que Janeiras bem cantadas
são um manto de emoções
neve hão-de ter nas estradas
mas aquecem corações
e ao dares de ti dó de peito
junto a mim no teu cantar
havemos de dar um jeito
do dó em sol se tornar
Conto das acusações (III)
Amo-te! - Disse o amante, de corpo suado, nu, em cima dela. Aguardou, parado, expectante. Ela abriu a boca; não conseguiu falar, o som morreu engasgado no atrito dos pensamentos. Revoltado, gemeu a acusação impiedosa - amas um morto, é ele que tu amas! Respiraste-lhe as cinzas, os teus ossos absorveram-nas, entranharam-nas e faz tanto parte de ti que agora é o teu esqueleto. Ela lembrou-se. O grito lançado pela garganta, como se o corpo não lhe pertencesse, parecia planar sobre si mesma; debater-se, os empurrões em quem tentava fechar o caixão, o desespero...e fechou-se com ele para ser cinza. O ultimo soluço, a ultima lágrima secou e solidificou nas outras; formaram uma lâmina aguda, invisível, na garganta e no peito. Dispensou o amante. A todos os outros disse o mesmo: amava um morto. Há acusações que revoltam, que fazem espernear, são uma pele que não se nos cola, enjoa-nos o cheiro sebáceo e a sua cor quando os tentam misturar com o nosso; outras, em que acreditamos, transformam-nos naquilo que morava nos dedos apontados, essas têm o verdadeiro veneno.
Certo/errado?
Não vale a pena questionar-se.
O encontro foi na hora errada;
o homem era o errado;
o encontro foi na hora errada;
o homem era o certo (coisa que não sabemos).
Não vale a pena duvidar.
O encontro foi na hora certa;
o homem era o errado;
o encontro foi na hora errada;
o homem ainda(!) era o errado.
Não vale a pena desmoralizar.
O encontro mesmo na hora certa
nunca é com o homem certo (!);
e na hora errada,
nunca está certo:
o homem é sempre errado.
Foto e poesia de Paula Raposo
Abençoada mãe galinha...
09 janeiro 2010
Fantasma(le)górico
O fantasma aproximou-se devagar, para não se apresentar como uma assombração. Limitou-se a estender uma mão e a fingir que a tocava, mesmo sabendo que jamais ela despertava do seu torpor.
E ele sabia que os fantasmas sentem o amor mas não o conseguem transmitir a quem não pode sentir um toque de outra dimensão, na ausência do calor naquela mão transparente de um holograma ausente que se contentava em sonhá-la assim, não existia uma sensação física como ela desejaria.
O fantasma nunca passaria de uma ilusão distante, de um simulacro de amante sem substância e incapaz de a reconfortar nos momentos mais necessários. Ele fazia parte dos desejos imaginários e mesmo nessa perspectiva há muito deixara de ser activa a sua participação.
O fantasma só tinha um coração sem consistência e isso conduzia-o de forma irreversível à desistência que combatia apenas com a energia do seu amor espiritual, de uma fé alimentada pelo ritual de a observar em silêncio por detrás do seu biombo onde se entretinha a espreitar o filme onde não havia lugar para um actor tão secundário, o figurante irrisório no contexto de um guião onde a sua interpretação se resumia a compor melhor o cenário.
Em silêncio, o fantasma desnecessário na maior parte do tempo fazia de figura decorativa e nem sequer falava a quem fingia que tocava, estendendo uma mão para o vazio, uma mão que não combatia o frio e por isso de pouco ou nada valia à pessoa a quem a estendia a partir do seu universo irreal e longínquo.
E ele sabia que os fantasmas sentem o amor mas não o conseguem transmitir a quem não pode sentir um toque de outra dimensão, na ausência do calor naquela mão transparente de um holograma ausente que se contentava em sonhá-la assim, não existia uma sensação física como ela desejaria.
O fantasma nunca passaria de uma ilusão distante, de um simulacro de amante sem substância e incapaz de a reconfortar nos momentos mais necessários. Ele fazia parte dos desejos imaginários e mesmo nessa perspectiva há muito deixara de ser activa a sua participação.
O fantasma só tinha um coração sem consistência e isso conduzia-o de forma irreversível à desistência que combatia apenas com a energia do seu amor espiritual, de uma fé alimentada pelo ritual de a observar em silêncio por detrás do seu biombo onde se entretinha a espreitar o filme onde não havia lugar para um actor tão secundário, o figurante irrisório no contexto de um guião onde a sua interpretação se resumia a compor melhor o cenário.
Em silêncio, o fantasma desnecessário na maior parte do tempo fazia de figura decorativa e nem sequer falava a quem fingia que tocava, estendendo uma mão para o vazio, uma mão que não combatia o frio e por isso de pouco ou nada valia à pessoa a quem a estendia a partir do seu universo irreal e longínquo.
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