HenriCartoon
13 maio 2010
Linha Verde
O céu uniformemente cinzento dos dias sem sol e o opressor silêncio dos vidros duplos provocavam-lhe náuseas. Os papeis que, apesar do seu dedicado esforço e das novas tecnologias, se acumulavam provocavam-lhe um sentimento de derrota diária que o mal amanhado almoço comido à pressa e a contínua sequência de cafés azedava até ao vómito ou às ácidas pontadas no estômago do fim da tarde.
– Parece que não está com boa cara, homem – repetiam, dia sim dia também, as várias pessoas que iam e vinham trazendo e levando papeis, só substituindo o homem pelo seu nome ou a cara pelo aspecto ou pela cor.
Ele, o homem, enclausurado no ambiente de luzes, ar e som artificiais, definhava e empalidecia de manhã à noite, desde que cruzava o hall do prédio até que reentrava no Metro para voltar para casa.
“Devo ser o homem mais cinzento do mundo” lamentava-se fixo na linha de metal electrificado do fosso do metropolitano. “É uma ironia, um paradoxo, o homem mais cinzento do mundo acabar numa colorida poça de vermelho vivo”, sorriu. “E ainda colorir o ferro e o betão da linha tão cinzentos como ele”, pensava sonhador, perscrutando em volta para se certificar da inexistência de crianças na estação. “O homem cinzento é um suicida ético”, vangloriou-se, inconscientemente satisfeito por ver duas crianças de mochilas às costas a descer a escada.
“Ainda não é hoje que largo a pasta” brincou, passando-a distraidamente da mão esquerda para a direita, e reconhecendo a mulher que estava ao seu lado e que ali via praticamente todos os dias tocou-lhe ao de leve no braço, num gesto espontâneo, irreflectido e que o surpreendeu.
– Sabe? – perguntou, acompanhando o toque.
A mulher sentiu a ponta dos dedos no braço, ouviu a voz, olhou-o sem expressão, ainda que também o reconhecesse, e manteve o olhar esperando que ele continuasse. Surpreendido consigo próprio e pelo relativo interesse da mulher, ele anunciou:
– Acho que sou o homem mais cinzento do mundo.
A mulher ouviu, encolheu os ombros e perguntou-lhe, impessoal:
– E depois?
– Depois?!
– Sim, e depois? – replicou a mulher, esticando o pescoço conferindo se o comboio já se via no túnel. – É a sua opinião e se o senhor for mesmo o homem mais cinzento do mundo a sua opinião é a opinião mais cinzenta do mundo e se a sua opinião é a mais cinzenta do mundo, acha que alguém se interessa por ela? Acha que tem algum interesse? Algum valor? – Resignada com a inexistência de luz ou barulho vindo do túnel, a mulher concluiu mudando de registo: – Ah! E se for o homem mais cinzento do mundo é um ser único, especial, e o seres únicos e especiais não são cinzentos, pelo que…
– Já sei… – interrompeu o homem, com uma careta e um sorriso. – Se for não posso ser.
– Nem mais – anuiu a mulher com um sorriso involuntário.
– Olá, eu chamo-me Raimundo – apresentou-se ele, esticando a mão.
– Sílvia – despediu-se ela, retribuindo o cumprimento manual e entrando para a carruagem que parara em frente deles. – Até amanhã, Raimundo, o homem que não é o mais cinzento do mundo.
– Parece que não está com boa cara, homem – repetiam, dia sim dia também, as várias pessoas que iam e vinham trazendo e levando papeis, só substituindo o homem pelo seu nome ou a cara pelo aspecto ou pela cor.
Ele, o homem, enclausurado no ambiente de luzes, ar e som artificiais, definhava e empalidecia de manhã à noite, desde que cruzava o hall do prédio até que reentrava no Metro para voltar para casa.
“Devo ser o homem mais cinzento do mundo” lamentava-se fixo na linha de metal electrificado do fosso do metropolitano. “É uma ironia, um paradoxo, o homem mais cinzento do mundo acabar numa colorida poça de vermelho vivo”, sorriu. “E ainda colorir o ferro e o betão da linha tão cinzentos como ele”, pensava sonhador, perscrutando em volta para se certificar da inexistência de crianças na estação. “O homem cinzento é um suicida ético”, vangloriou-se, inconscientemente satisfeito por ver duas crianças de mochilas às costas a descer a escada.
“Ainda não é hoje que largo a pasta” brincou, passando-a distraidamente da mão esquerda para a direita, e reconhecendo a mulher que estava ao seu lado e que ali via praticamente todos os dias tocou-lhe ao de leve no braço, num gesto espontâneo, irreflectido e que o surpreendeu.
– Sabe? – perguntou, acompanhando o toque.
A mulher sentiu a ponta dos dedos no braço, ouviu a voz, olhou-o sem expressão, ainda que também o reconhecesse, e manteve o olhar esperando que ele continuasse. Surpreendido consigo próprio e pelo relativo interesse da mulher, ele anunciou:
– Acho que sou o homem mais cinzento do mundo.
A mulher ouviu, encolheu os ombros e perguntou-lhe, impessoal:
– E depois?
– Depois?!
– Sim, e depois? – replicou a mulher, esticando o pescoço conferindo se o comboio já se via no túnel. – É a sua opinião e se o senhor for mesmo o homem mais cinzento do mundo a sua opinião é a opinião mais cinzenta do mundo e se a sua opinião é a mais cinzenta do mundo, acha que alguém se interessa por ela? Acha que tem algum interesse? Algum valor? – Resignada com a inexistência de luz ou barulho vindo do túnel, a mulher concluiu mudando de registo: – Ah! E se for o homem mais cinzento do mundo é um ser único, especial, e o seres únicos e especiais não são cinzentos, pelo que…
– Já sei… – interrompeu o homem, com uma careta e um sorriso. – Se for não posso ser.
– Nem mais – anuiu a mulher com um sorriso involuntário.
– Olá, eu chamo-me Raimundo – apresentou-se ele, esticando a mão.
– Sílvia – despediu-se ela, retribuindo o cumprimento manual e entrando para a carruagem que parara em frente deles. – Até amanhã, Raimundo, o homem que não é o mais cinzento do mundo.
«o caracol que quer ir à fava...» - postalinho do Jaf
Equilibrar instantes
Ergue agora a espada, amor
que as horas vão errando
pelos teus cantos;
por enquanto,
entretanto,
aqui,
e
as horas de ti não entendem
como não me passaram;
tu, um entre tantos
foram miragem
ou deserto
em ti.
E?
Ergue agora a espada, amor
tuas horas, meu quando
que inteiro levaram;
não há ontem,
segundos
ruí
e
as horas de ti; nem entendem
como certas me deixaram
lá entre teus tempos,
tu, ancoragem;
momentos
fluí.
E?
que as horas vão errando
pelos teus cantos;
por enquanto,
entretanto,
aqui,
e
as horas de ti não entendem
como não me passaram;
tu, um entre tantos
foram miragem
ou deserto
em ti.
E?
Ergue agora a espada, amor
tuas horas, meu quando
que inteiro levaram;
não há ontem,
segundos
ruí
e
as horas de ti; nem entendem
como certas me deixaram
lá entre teus tempos,
tu, ancoragem;
momentos
fluí.
E?
«Abençoada matemática que não é uma batata» - contas de Paulo Moura
Cardeal Saraiva Martins
numa entrevista ao jornal i
publicada em 6 de Maio de 2010
"Vamos lá então fazer continhas.
Há em todo o mundo 1 papa, 192 cardeais, 5.002 bispos e 409.166 padres da Igreja Católica (fontes: «The Pontifical Yearbook 2010» via EWTN.com; e Wikipedia) - total: 414.361.
A população mundial é actualmente de cerca de 6.800.000.000 habitantes.
Ou seja, a estrutura básica da Igreja representa 0,006% da população mundial.
Como «0,03% dos casos [de pedofilia] ocorrem na Igreja», 0,03% a dividir por 0,006% é 5. Ou seja, haverá o quíntuplo de incidência de casos de pedofilia na Igreja em relação à média mundial?
Paulo Moura
Blog Persuacção"
12 maio 2010
A hierarquia da relevância
Percorreu, ensonado, a longa distância que os separava, deliciado por antecipação com o que adivinhava seria a reacção dela à surpresa que lhe preparara ao longo de dias.
Cansado, chegou finalmente ao destino e tentou controlar a emoção que o desesperava por faltar ainda tanto tempo, minutos, eternidade, para poder abraçá-la outra vez.
Ansioso, fumou um cigarro e depois dirigiu-se para o ponto onde iria encontrá-la, preocupado por poder escapar-lhe algum pormenor que não poderia confirmar porque assim iria estragar a surpresa planeada com todo o carinho e atenção.
Esperou, sempre com a cabeça no ar para se certificar que não a perderia no meio da pequena multidão, saudades mal contidas, vontades reprimidas pela distância que os separara até esse dia que sentia especial.
A boca denunciou-lhe a alegria quando a viu, num sorriso que ela não devolveu, visivelmente aborrecida com algo mais importante do que o facto de ele estar presente e com isso nem contar.
Tentou perceber o que se passara, grave certamente, para justificar tão estranha reacção.
E foi quando recebeu a explicação que percebeu, na hierarquia da importância, a dimensão da sua irrelevância perante o desgosto que outro lhe dera e que se sobrepunha de forma conclusiva a qualquer emoção que a sua presença inesperada pudesse suscitar, e que concluiu, desencantado, que o amor já tinha acabado ou aquela pessoa não era quem julgara até então.
Cansado, chegou finalmente ao destino e tentou controlar a emoção que o desesperava por faltar ainda tanto tempo, minutos, eternidade, para poder abraçá-la outra vez.
Ansioso, fumou um cigarro e depois dirigiu-se para o ponto onde iria encontrá-la, preocupado por poder escapar-lhe algum pormenor que não poderia confirmar porque assim iria estragar a surpresa planeada com todo o carinho e atenção.
Esperou, sempre com a cabeça no ar para se certificar que não a perderia no meio da pequena multidão, saudades mal contidas, vontades reprimidas pela distância que os separara até esse dia que sentia especial.
A boca denunciou-lhe a alegria quando a viu, num sorriso que ela não devolveu, visivelmente aborrecida com algo mais importante do que o facto de ele estar presente e com isso nem contar.
Tentou perceber o que se passara, grave certamente, para justificar tão estranha reacção.
E foi quando recebeu a explicação que percebeu, na hierarquia da importância, a dimensão da sua irrelevância perante o desgosto que outro lhe dera e que se sobrepunha de forma conclusiva a qualquer emoção que a sua presença inesperada pudesse suscitar, e que concluiu, desencantado, que o amor já tinha acabado ou aquela pessoa não era quem julgara até então.
Celibato: Solteironas
IV. Solteironas. Custa-me fallar das solteironas porque ninguem está mais persuadido do que ellas da irregularidade do seu estado, e em geral é contra vontade que ellas ficaram celibatarias. É sobre tudo a ellas que se applica o adagio antigo: «0 casamento retarda a velhice». Acreditar que a virgindade conserva a frescura da côr, é um funesto erro de que as solteironas são as victimas. Uma solteira que fica virgem depois de ter attingido o desenvolvimento completo de seu physico não tarda a ser assaltada d'uma multidão d'indisposições, d'erupções cutaneas, de flatos hystericos, mortaes inimigos da sua belleza. A sua frescura decresce, os seus encantos murcham, e a sua saude altera-se á medida que se demora em cumprir o fim da natureza. Ao contrario a mulher casada, sobre tudo o que já concebeu, bebe nova frescura nos prazeres que são vedados à virgem, e emquanto que uma brilhante flor desabrochada recebe do casamento o desenvolvimento de todas as suas faculdades, a outra, de mau humor e sempre afflicta por encommodos diversos, arrasta uma vida languida e inutil, sem amar e sem ser amada.
L. Seraine. 19??:170
L. Seraine. 19??:170
InVocações (VII)
Mágico? Estás aí? Aqui, no limite dos Mundos, eu sei quem sou. E se as palavras ficarem mágicas, e se tocarem o teu Mundo, e se eu tocar o teu Mundo, quando tocar o teu Mundo ainda saberei? Um dia, respondeste com o meu nome; nomeaste e eu, agora, sou. Sim, um livro inteiro nasce do teu título. A tua cartola ainda gira no chão, gira no infinito e chega ao eterno. Não, o tempo não parou...
Quando estás aqui, o tempo funde, como areia em vidro, as horas, os minutos, os segundos em ti.
Então, não há tempo, não acontece, só tu, só tu aconteces. A cartola gira perdida porque é de ti; sem tempo e sem ti só fica um vácuo absurdo. Sem areia nem vidro, só o calor que funde; tonta do calor. Estás aqui?
Quando estás aqui, o tempo funde, como areia em vidro, as horas, os minutos, os segundos em ti.
Então, não há tempo, não acontece, só tu, só tu aconteces. A cartola gira perdida porque é de ti; sem tempo e sem ti só fica um vácuo absurdo. Sem areia nem vidro, só o calor que funde; tonta do calor. Estás aqui?
11 maio 2010
Orgasmo feminino: ideias que funcionam
A ordem é para despir. Despir, pois! Despir o mais possível. Roupas, brincos, colares, aparências, preocupações, neuroses, preconceitos, etc. Despir primeiro. Lamber, beijar, conversar, roçar, até que a última peça do “traje” mais íntimo caia por “terra”.
Despiram? Então aqui vai uma dica! Sejam lá quantos forem os quilómetros de corrida na “arena” que a cada um satisfaçam, haverá uma altura de inevitável rendição. No sexo por prazer o orgasmo não é um objectivo, apenas uma conclusão, muitas vezes desejável. Portanto, senhoras…”don’t stress”! Cavalheiros… não sejam antipáticos! Dêem lá uma ajudinha às senhoras, que isto para elas costuma ser um bocadinho mais difícil… Para os mais atléticos, e com algum fôlego de corredor de fundo, sugere-se que saltem para cima das senhoras. Saltaram? Que tal? Sentem-se confortáveis? Então agora levantem os bracinhos! Dêem espaço às senhoras para baterem uma à vontade enquanto as fodem devagarinho… depois, melhor, melhor, é deixarem activo o comando de voz: “mais depressa”, “mais devagar”, “mais fundo”, “oh! Pára aí!”, “assim…isso!”… Os bracinhos doem? Falta de prática. Bem se vê que têm andado a faltar aos treinos! Não se preocupem, isso com o tempo melhora. Estão a ver uma cara muito “feia” com olhos inchados de prazer? Bom sinal… Então? Resulta?
(… meninos bonitos… portaram-se bem… merecem uma recompensa à altura… não? Agora, meninas… é a vossa vez… façam o vosso melhor, sim? Não envergonhem o género feminino! Não se esqueçam… isto é uma competição, e das mais cerradas… ganha aquele que for capaz de fazer as maiores “maldades” ao outro…)
Despiram? Então aqui vai uma dica! Sejam lá quantos forem os quilómetros de corrida na “arena” que a cada um satisfaçam, haverá uma altura de inevitável rendição. No sexo por prazer o orgasmo não é um objectivo, apenas uma conclusão, muitas vezes desejável. Portanto, senhoras…”don’t stress”! Cavalheiros… não sejam antipáticos! Dêem lá uma ajudinha às senhoras, que isto para elas costuma ser um bocadinho mais difícil… Para os mais atléticos, e com algum fôlego de corredor de fundo, sugere-se que saltem para cima das senhoras. Saltaram? Que tal? Sentem-se confortáveis? Então agora levantem os bracinhos! Dêem espaço às senhoras para baterem uma à vontade enquanto as fodem devagarinho… depois, melhor, melhor, é deixarem activo o comando de voz: “mais depressa”, “mais devagar”, “mais fundo”, “oh! Pára aí!”, “assim…isso!”… Os bracinhos doem? Falta de prática. Bem se vê que têm andado a faltar aos treinos! Não se preocupem, isso com o tempo melhora. Estão a ver uma cara muito “feia” com olhos inchados de prazer? Bom sinal… Então? Resulta?
(… meninos bonitos… portaram-se bem… merecem uma recompensa à altura… não? Agora, meninas… é a vossa vez… façam o vosso melhor, sim? Não envergonhem o género feminino! Não se esqueçam… isto é uma competição, e das mais cerradas… ganha aquele que for capaz de fazer as maiores “maldades” ao outro…)
[blog Libélula Purpurina]
(Des)enlace
Viagem com retorno
a de agora em diante;
não mais bilhetes só de ida,
o regresso marcado,
a viagem inviolável
do teu sexo.
Regressarei para redimir
outras façanhas nossas,
assim saibas ouvir-me
e entender o estrondo
de um apoteótico
desenlace.
Foto e poesia de Paula Raposo
InVocações (VI)
O chão estala o eco de um tapete intacto. A beleza é funda, muito funda nos teus olhos; lua azul, a perfeição é um fascínio sinistro. Impasse da nudez. A lua que desce, lua que desce, lua que desce. A lua parou. O Mágico riu-se e a árvore riu-se; um grito empalideceu e quebrou-se no tapete. A lua desceu no lago e encheu-lhe o ventre. Dela. Dela. Dela. Ela. Eu. Era o Mágico que chamava, vibrava o nome no limite dos Mundos. O nome trespassado pela vontade. Olha. A lua azul transborda nos olhos do Mágico, enche os dela. Dela. Dela. Dela. Ela. Eu. Nudez do impasse. Depois trespasse. O chão nos pulsos. O eco aproximou-se e disse que estava na hora de ser um. O eco sentou-se e deitou-nos no linho do tapete. O chão fechou-nos lá dentro. A árvore era uma miragem do mundo do Mágico. Não queria voltar. Encostou os ramos ao eco e disse que lá não podia rir. Não entendia. As pessoas riam de lábios falsos e ela ria de ramos verdadeiros mas não podia rir. O mundo do Mágico não fazia sentido no mundo sem sentido. Preferia ser uma miragem a estalar no chão por baixo das nossas costas. Uma miragem. Mágico.
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