Quando abriu o restaurante “Combinado”, perto da Estação Nova, a modernidade da sua decoração, a novidade de uma ementa catalogada por números, o espaço bem iluminado junto ao balcão e, numa penumbra mais íntima, algumas acolhedoras mesas ao fundo da sala, tornou-se, durante alguns anos, a coqueluche de Coimbra.
Uma tarde, encontrei ali uma colega que estava sentada numa dessas mesas. Ao ver-me entrar, fez-me sinal e chamou-me.
Cumprimentei-a, poisei os livros e a capa em cima de uma cadeira e sentei-me ao seu lado, num daqueles bancos corridos almofadados que contornavam a mesa, fixos à parede.
Conhecíamo-nos já há bastante tempo, mas, salvo um ou outro baile em que, esporadicamente, tínhamos dançado juntos, as nossas conversas eram sempre triviais e fugidias antes de entrarmos para a sala de aula.
Naquela tarde, a superficialidade da nossa conversa em nada diferiu das vezes anteriores, até porque eu estava com pressa. Tinha ido ali apenas beber um fino para depois seguir até ao Bairro. A verdade é que, daí para a frente, nada voltaria a ser como dantes...
Um quarto de hora depois, disse-lhe que tinha de ir e levantei-me. Peguei nos livros, mas ao virar-me, deixei que, inadvertidamente, a capa entornasse na sua blusa o copo de leite com chocolate que ela segurava entre as mãos.
Pressuroso, prontifiquei-me a ajudá-la a limpar a nódoa castanha que ia alastrando pelo tecido da fina blusa branca, deixando transparecer o desenho do seio.
Ela, simpaticamente, lá foi dizendo que são coisas que acontecem, que não me preocupasse, mas eu bem via o seu ar incomodado.
Pedi ao empregado um pano embebido em água morna e, delicadamente, fui esfregando a nódoa, na vã esperança de a fazer desaparecer. Dei por mim a sentir um estranho arrepio de cada vez que lhe tocava a região do seio com a ponta do pano. As sensações que me iam invadindo, faziam-me esquecer a nódoa, o coração galopava, a respiração acelerava e, por vezes, deixava escorregar os dedos, descontrolado, por baixo do pano húmido.
Os contactos directos dos dedos, intervalados com os do pano, aumentava-me o desejo de continuar a tocar-lhe, por tempo indefinido, sob o pretexto de estar a tentar remover a nódoa.
Não vi da parte dela, nenhuma resistência ou agastamento, nem sequer um olhar reprovador ou de aviso. Mas interpretei isso como sendo uma manifestação de confiança na minha boa educação e na minha seriedade. Eu é que devia ser capaz de afastar, e não o estava a conseguir, os pensamentos que, estupidamente, me assaltavam e me toldavam o raciocínio.
A custo, pus um travão naquela caricata situação. Despedimo-nos, finalmente, e cada um foi à sua vida. No caminho para o Bairro, recriminava-me por ter perdido a compostura, mas ao mesmo tempo, revivia com prazer aqueles inesperados momentos. Enfim, dizia para comigo: O que estava feito, feito estava!
Dias mais tarde, reencontrámo-nos num baile nos Twist-Pópó em Montes Claros. Dançámos inúmeras vezes, bebemos “cup”, falámos dos professores, de política, sei lá!...
Inopinadamente, no meio de uma dança ao som da canção “Sans toi, ma vie”, do Adamo, em que os nossos corpos colados num só, se movimentavam lenta e cadenciadamente, ela quebrou o silêncio e os meus pensamentos, dizendo-me:
- No outro dia, ao menos podias ter-me pedido desculpa. Nunca me disseste sequer que lamentavas o acidente do copo entornado! Nem parece teu!
- Não to disse, nem to direi. Porque, de facto, eu não lamentei o que aconteceu. Foi sem querer, foi um mal, mas há males que vêm por bem... – respondi eu.
- Nisso tens razão, Rui! Também eu lamentei ao principio, mas depois acabei por gostar do que aconteceu! – disse ela baixinho, puxando-me mais para si.
Rui Felício
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