20 março 2011

As chinesas é que a sabem toda

Voz

Não sei se mais valem
as palavras que se dizem
ou as palavras que se escrevem
não lhes conheço uma medida
e em toda a minha vida
só lhes pedi que nunca se calem
quer me façam mal ou bem.
Meu amor, cada uma que de ti vem
é, por isso, ternamente recebida,
é, por isso, desembrulhada, agradecida,
e assim, cada uma que me dás tem
sonhos que já nunca morrem
sem coração
gritos que já nunca enlouquecem
na solidão
de uma qualquer palavra escondida,
má ou boa, é tua, não será perdida.

«Amor incestuoso» - por Rui Felício


Helena era a terceira filha de Almerindo Teodósio, e a primeira e única filha da Maria da Conceição, a quem o abastado agricultor seduzira ainda donzela, tornando-a numa mãe solteira. Por causa disso, filha e mãe sofreram a segregação do ambiente aldeão, para o resto dos seus dias, uma por ser filha do pecado a outra por ter dado aquele passo em falso.
O povo conjecturava, mas da boca da Maria da Conceição nunca ninguém soube quem era o pai da Helena. O Teodósio obrigara-a a jurar segredo sobre a campa rasa dos seus pais que, um a seguir ao outro, a tinham deixado órfã ainda ela era menina.
A labuta de sol a sol a que a Helena se sujeitava, já adolescente, na Quinta do Vale da Azenha, em troca da fraca jorna que entregava à mãe para o sustento das duas, tisnava-lhe a pele, endurecia-lhe os músculos, ensombrava-lhe o semblante.
Não havia rapaz na aldeia que não desejasse andar toda a vida perdido na escuridão dos olhos negros, profundos, plantados no rosto trigueiro da Helena, que não sonhasse em provar o doce dos favos de mel que eram os lábios nacarados daquela menina com corpo de mulher.
Mas ia desistindo, ano após ano. Toda a gente via que o Francisco Teodósio, capataz da Quinta e filho mais novo do velho Almerindo, andava de olho nela. Cercava-a, dava-lhe trabalhos mais leves, ia levá-la a casa montada na garupa do seu cavalo, enchia-a de mimos...
Ela nunca sorria para ninguém, mas quando o Francisco se aproximava, deixava timidamente aflorar duas filas de dentes brancos como neve a contrastar com a sua pele morena.
Até que um dia o Francisco foi falar com a Maria da Conceição. Ia pedir-lhe a filha em casamento.
Espantado, nem quis acreditar na terminante recusa que ouviu da boca da Maria da Conceição que, lavada em lágrimas, lhe disse que ele lhe estava a pedir uma coisa impossível.
Falou então com o seu pai e este, furioso, proibiu-o terminantemente de lhe voltar a tocar no assunto. Que o deserdava se ele persistisse nessa ideia!
O Francisco e a Helena, combinaram então, em segredo, esperar pela maioridade dela e, no dia seguinte ao do seu aniversário, fugiram da aldeia. Meteram os papéis em Coimbra e casaram-se na Igreja de Santa Cruz.
Foi só então, passados 21 anos, que a aldeia ficou a saber que o Almerindo era o pai da Helena e que tinha contratado um advogado para ser feita a anulação do casamento dos filhos...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações



«Pendency» da série «Impossible love» por Dorina Costras

Outra dimensão

crica para visitares a página John & John de d!o

19 março 2011

Enlarge your what???

Ora esta...
Ouvi o coiso agarrado a mim referir que na internet andam a tentar vender uma cena que ele chama enlarge your penis.
Enlarge your penis? Isso vende-se? Sei que existem uns comprimidos azuis para os meus homólogos mais preguiçosos e até compreendo que os coisos agarrados a eles tomem uma atitude para os acordarem desse torpor, mas o conceito de pagarem para alguém os esticar...
...Espera lá... a ideia será mesmo esticar-nos? Mais ainda do que acontece quando nos levam a passear ou lhes passam ideias malucas pela carola ou coisas agarradas às passarinhas pela vista?
Será que a ideia é mesmo aumentar-nos o tamanho? Credo! Como é possível uma coisa dessas? Fazem o quê, puxam-nos pelas orelhas? Não temos.

E para que querem os coisos agarrados a nós fazer-nos crescer? Alguém se queixou? Não?
Bem me parecia...

De tanto te pensar

De tanto te pensar
esqueci
as margens
do teu corpo,
o perfil
das tuas mãos
de te lembrar
tanto esqueci
as palavras
do poema...

Poesia de Paula Raposo

Shooting Well #3

Parece-me inegável que a magia passa sempre, muito, pelas mãos.

Loira da Lituânia especializada numa dança jamaicana bem malandra

18 março 2011

a felicidade

Cristino conheceu Mária de quem teve uma filha, Pedra, e um filho, Luciomar, que nasceu e foi registado no Brasil, durante uma viagem de Cristino à Bolívia. Mária ficou em Portugal mas, no decorrer da gravidez, conheceu Tereso, um baiano que morava em Chelas junto ao Pingo Doce e que vivia morrendo de saudades do Rio onde tinha sido calceteiro. Pedra ficou com uma meia-tia da parte da madrinha da mãe e Mária foi ao Brasil para ver o calcetão que Tereso dizia ter feito. Na Bolívia, Cristino apaixonou-se por Sérgia, uma algarvia que acompanhava com bolivianas da vida nas calles de La Paz. Cristino achou-lhe graça e emprenhou-a, ainda que a meio da tarde do dia seguinte, já sóbrio, não conseguisse perceber porquê. Tereso deixou uma flor estranha e com um odor ainda pior no quarto de Mária na Maternidade Municipal Fernando Magalhães onde nasceu Luciomar e partiu. Partiu quatro costelas, dois dos três ossos ilíacos do lado direito e perfurou a abóbada palatina com um lápis n.º 2 quando foi atropelado. Tereso já não tinha intenções de voltar, pois gostava de grávidas mas não de mães, e o estado de morto que lhe diagnosticaram à entrada do hospital impediu-o de qualquer recaída, por isso, Mária, nada grávida e duplamente mãe, nunca mais o viu, nem recuperou o lápis que lhe emprestara. Na manhã de denso nevoeiro em que Cristino chegou da Bolívia ainda Mária não tinha voltado do Brasil mas, duas semanas depois, quando saiu de uma casa de banho segura em Ranholas onde evacuou, entre graves crises de obstipação, toda a coca que trouxera, já Luciomar, Pedra e Mária estavam em casa à espera das notas do narcotráfico como se não fosse nada com eles. Eram felizes.

Eu gosto de pessoas


Foto: Shark

Livro do avesso

Há um talho pequeno mas recomendaram-me que nada lá comprasse. Vou agora ali abaixo, vou tomar café, vou escrever a rua em vez de a percorrer com passos; já sinto nos pés as calçadas, estão tortas como as sinto nos dedos quando as deito às linhas. São de palavras, as ruas sussurram-me palavras, parecem folhas que caem, aos milhares, de árvores invisíveis, as pedras sussurram-me palavras; há mais palavras que voam e eu julgo que são as que caem do pensamento das pessoas; os pés de uma menina pequena, sem sapatos, contam-me que estão muito frios e eu queria tocar-lhes mas não posso, ninguém entenderia, estão na rua, na vida real e eu estou no mesmo exacto sítio, na mesma exacta rua, mas num livro que me parece uma vida muito mais real, pelo menos mais nítida porque está à luz do nexo; neste livro, pelo menos, eu posso tocar o frio dos outros sem que ninguém me ache tão estranha como eu acho estranhas as pessoas que não tocam nos frios e os talhos onde não se pode comprar carne. Mas não faz mal, ainda encontro nexo nos dois mundos quando coisas como jantar e almoço me fazem pensar em ti muito mais do que faria a emoção de uma paixão fulminante, sexo desenfreado em todos os cantos da casa, jogos de sedução, ou a pele quase histérica. Tudo isso eu já conheci e, se a carne e o desejo também aqui moram, é, contudo, nas coisas pequenas - no almoço, no jantar, no supermercado, no café, nos risos, no desabafo, no abraço, na mão que agarra com força, no calor que me emprestas, no cinto das calças que desaparece, nas bainhas por fazer, nas nódoas eternas na camisa bonita, nos olhos sonolentos de manhã, no próprio sono - que te reconheço forma e corpo muito para além desse corpo humano; é daí, dessa forma para além do corpo, que me vem, mais do que de qualquer outra coisa, o desejo de te despir em cada abraço; o desejo pelo teu corpo vem-me do teu corpo para além do corpo; é daí, apenas da tua existência, que me vem um sentimento único, imenso, novo, inigualável, este que é da gratidão mais profunda, mais feliz, mais cheia de todas: a que me faz acordar de manhã a agradecer-te, quase ofegante, à vida, quase com medo que a vida pense que eu possa ser mal agradecida e te leve como castigo de uma cegueira que eu não tenho; eu vejo-te cada instante.

Com uma musa a sério tudo flui melhor


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oglaf.com

17 março 2011

Brothers in arms

Fico sempre espantado com a quantidade de nomes que os coisos agarrados a nós inventam para nos designar. Fartam-se de desdenhar, até consideram um insulto mandarem-se para nós pilas, mas depois esforçam-se para nos baptizar a torto e a direito (nas pilas também funciona assim, não temos todas o mesmo ângulo relativamente ao coiso agarrado) como se fossemos o centro das suas atenções.
A sério que nunca vou entender a estranha relação entre os irmãos siameses que formamos, agarrados pela natureza e destinados a partilhar uma existência comum. Sim, eu sei que o coiso agarrado a mim (mesmo não estando constantemente oprimido dos pés à cabeça por horríveis peças de vestuário como eu) também possui os seus constrangimentos e restrições, as suas opressões sociais que tanto lhe infernizam a existência. E por isso o tolero e até acabo por brilhar quando ele precisa, pois sei que ele fica todo contente e vaidoso e para mim nem é frete algum.

Nós apêndices temos que ser uns prós outros...