Há um talho pequeno mas recomendaram-me que nada lá comprasse. Vou agora ali abaixo, vou tomar café, vou escrever a rua em vez de a percorrer com passos; já sinto nos pés as calçadas, estão tortas como as sinto nos dedos quando as deito às linhas. São de palavras, as ruas sussurram-me palavras, parecem folhas que caem, aos milhares, de árvores invisíveis, as pedras sussurram-me palavras; há mais palavras que voam e eu julgo que são as que caem do pensamento das pessoas; os pés de uma menina pequena, sem sapatos, contam-me que estão muito frios e eu queria tocar-lhes mas não posso, ninguém entenderia, estão na rua, na vida real e eu estou no mesmo exacto sítio, na mesma exacta rua, mas num livro que me parece uma vida muito mais real, pelo menos mais nítida porque está à luz do nexo; neste livro, pelo menos, eu posso tocar o frio dos outros sem que ninguém me ache tão estranha como eu acho estranhas as pessoas que não tocam nos frios e os talhos onde não se pode comprar carne. Mas não faz mal, ainda encontro nexo nos dois mundos quando coisas como jantar e almoço me fazem pensar em ti muito mais do que faria a emoção de uma paixão fulminante, sexo desenfreado em todos os cantos da casa, jogos de sedução, ou a pele quase histérica. Tudo isso eu já conheci e, se a carne e o desejo também aqui moram, é, contudo, nas coisas pequenas - no almoço, no jantar, no supermercado, no café, nos risos, no desabafo, no abraço, na mão que agarra com força, no calor que me emprestas, no cinto das calças que desaparece, nas bainhas por fazer, nas nódoas eternas na camisa bonita, nos olhos sonolentos de manhã, no próprio sono - que te reconheço forma e corpo muito para além desse corpo humano; é daí, dessa forma para além do corpo, que me vem, mais do que de qualquer outra coisa, o desejo de te despir em cada abraço; o desejo pelo teu corpo vem-me do teu corpo para além do corpo; é daí, apenas da tua existência, que me vem um sentimento único, imenso, novo, inigualável, este que é da gratidão mais profunda, mais feliz, mais cheia de todas: a que me faz acordar de manhã a agradecer-te, quase ofegante, à vida, quase com medo que a vida pense que eu possa ser mal agradecida e te leve como castigo de uma cegueira que eu não tenho; eu vejo-te cada instante.
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Uma por dia tira a azia