26 fevereiro 2014

«A chuva, amor» - João

"Chove tanto amor. E o vento. O vento amor. Vejo os teus cabelos ondular e preocupo-me, penso em correr para ti e segurar-te, amor. Amparar-te. Encostar-me a ti, como contraforte, fazer força para não cair. Enterro os meus pés no chão, e a terra faz-se lama, e eu debato-me para nos segurarmos. Tanto vento, amor. Começo a escorregar na lama, vejo os pés mover-se, primeiro devagarinho, depois já a obrigar-me a dar passos atrás, como se o chão fosse passadeira rolante. E encosto-me a ti, agarro-me a ti, seguro-te, e contrario a tempestade. E os teus cabelos amor. Os teus cabelos a ondular. Choras. A chuva bate-nos na cara, o vento faz folhas e ramos voar na nossa direcção, e agita-me o casaco, arranca-mo dos braços, liberto o peso, e empurro ainda mais na tua direcção, faço ainda mais força, e já me custa fixar os pés na água e na lama que correm, e a torrente já tem pedras, e tudo me escava por baixo dos pés como o mar que leva a areia e nos enterra. Abanamos os dois ao vento, os teus cabelos a esvoaçar, eu já quase de joelhos, a forçar as tuas pernas, a tentar fixar-te no lugar. Chove tanto amor. E há tanto vento. E estamos quase a cair. Estamos quase a escorregar vertente abaixo, levados nas águas. E eu já grito. Já me perco em imprecações, e tu gemes baixinho, e tremes. Tremes tanto amor. E continuo a levar com água na cara, e continuo a levar com folhas, pedras e ramos de árvore, e continuo a segurar-te, e tu gemes baixinho e dizes-me, com os cabelos ondulantes “amor…”, e eu tento olhar-te enquanto me esforço para não ser levado, e tu repetes “amor…” e eu agarro-me à tua mão, e ainda vou a tempo de te ouvir dizer “amor… eu já não te quero”, e num momento falham-me os joelhos, e tombo por fim na lama, e não tenho tempo de nada, e vou nas águas, a gritar mudo, e vejo-te ficar mais longe, e choro compulsivamente enquanto as pedras me batem no corpo, enquanto a água me afoga, enquanto o vento me leva triste e morro devagarinho."
João
Geografia das Curvas

«Proooonto, proooonto, já passou...» - Nicolas François Octave Tassaert



Nicolas François Octave Tassaert (França, 1800 – 1874)

Via Bernard Perroud

«sem título» - bagaço amarelo

Saí sozinho. Fui ter a um bar nos subúrbios de Aveiro onde estava uma mulher sentada no canto, pelo menos há uns trezentos anos, com um cão de guarda adormecido. Atrás do balcão, um homem que lia jornais desportivos já amarelecidos pelo tempo perguntou-me o que eu queria. Apeteceu-me dizer-lhe que me apetecia que houvesse paz no mundo, que o capitalismo acabasse duma vez por todas como pai do nosso modelo económico e que a Lena D'àgua nunca tivesse envelhecido. Pelo sim pelo não, acabei por pedir apenas uma aguardente CR&F.

- Tem CR&F? - perguntei.
- Tenho, mas também tenho mais baratas.
- Quanto é a CR&F? - assustei-me.
- Três.
- Pode ser.

A mulher com mais de trezentos anos olhava para mim. Eu sabia-o, embora ela não estivesse dentro do meu ângulo de visão. Há olhares que pesam sobre nós, mesmo quando não os enfrentamos. O homem, por qualquer motivo que nunca vou perceber, serviu-me duas CR&F duma vez e cobrou-me só uma. Em silêncio, cheguei à conclusão que ele sabe que quem bebe CR&F nunca bebe só uma. É uma questão estatística e, pela parte que me toca, tem razão.

- O Ronaldo é muito melhor que o Eusébio. - disse o homem.

A mulher com mais de trezentos anos ri-se, embora eu tenha dúvidas que saiba porquê. Peço mais duas aguardentes com a condição de pagar só uma. Os bares dos subúrbios da cidade são embrulhos de solidão. É por isso que gosto deles. São os únicos capazes de pegar na solidão de várias pessoas e embrulhá-la duma forma bonita, como se fosse uma prenda de Natal.
Lembro-me de ter ido a este mesmo bar há uns oito anos atrás, pouco tempo depois do meu divórcio e quando me sentia o homem mais sozinho do mundo, com excepção de todos os outros, e de ter visto a mesma mulher com mais de trezentos anos e o mesmo homem a ler jornais desportivos.
Tal como as fases da Lua, há coisa que nunca mudam.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Postalinho Happy

"O que se aprende nas revistas femininas..."
Corpos & Almas


25 fevereiro 2014

As melhores cenas de sexo em "gravidade zero"

Eva portuguesa - «zen»

Estou zen. Seja lá o que for que isso quer dizer.
Não me apetece chatear. É simples.
Podem continuar a tentar (até porque quem o faz, fá-lo com tanta maldade que não consegue resistir). Mas hoje estou zen. E não vou deixar que factores externos alterem esta minha paz interior. No aconchego e conforto de um cantinho tão meu, que é pago com o aluguer do meu corpo, não vou valorizar o que não interessa, o que nada acrescenta de positivo à minha vida. O quê ou quem.
Não. Pelo menos hoje não.
Não vou olhar para o vazio que preenche a minha vida, para as condicionantes e limitações que esta profissão impõe na minha vida pessoal. Não vou pensar nos clientes que se foram, no dinheiro que não chega, nos telefonemas e mails ordinários e insultuosos.
Hoje, e pelo menos hoje, não vou deixar que roubem a minha paz interior nem que machuquem a minha alma.
Hoje estou zen. Em paz com o mundo. Em paz comigo (as 2 facetas de mim).
E por isso hoje vou apenas olhar para o fogo que arde na lareira, tentando esvaziar a minha mente. Vou pensar nos aspectos positivos que a minha vida tem. Vou pensar no meu filho, que é o meu mundo, a minha vida, a minha felicidade. Vou lembrar as pessoas positivas e bonitas (por dentro e por fora) que se têm atravessado no meu caminho ao longo dos anos, quer a nível pessoal quer a nível profissional. Vou sorrir ao pensar naquele cliente que ontem veio do Porto e me trouxe um perfume de prenda do dia dos namorados. Ou daquele outro que me costuma trazer rosas. Ou aquele que me envia palavras de carinho e conforto quando me sente menos bem. Vou recordar aquele homem que me amou e aceitou, mesmo sabendo o que faço para ganhar a vida. Vou pensar nos amigos que, conhecendo as duas metades da laranja que sou eu, nunca me julgaram ou criticaram. E, destas pessoas maravilhosas, vou certamente irradiar alegria ao contabilizar aquelas que ainda permanecem.
Hoje estou zen. Estou de bem comigo e com o universo. Tendo mágoas e feridas, aceito-as como fazendo parte do meu processo de crescimento pessoal. E acredito que amanhã vai ser melhor. E sei que ainda terei muito para receber no futuro. Que serei feliz. Não sei como, mas agora também não interessa nada. Sei, porque sei, que tudo vai melhorar. E assim como o inverno chuvoso e frio dará lugar a dias radiantes de sol, também a minha realidade mudará para melhor.
Sinto isto.
Porque hoje estou zen.


Eva
blog Eva portuguesa - porque o prazer não é pecado

«Escrevo-te» - Susana Duarte

escrevo-te, para que saibas onde estou

perdi-me para além das amoreiras bravas,
que me pintam os lábios, e a pele, e os sentidos,
com as cores profundas das noites azuis

escrevo-te, para que saibas onde estou

perdi-me para além dos oceanos, onde nereidas
consomem o sal sereno dos mares calmos,
e a história nos reescreve nos dias salgados da procura

escrevo-te, e quem sabe, descobrir-me-ás

onde as Náiades serenam as águas já doces
e as amoras me preenchem com o rubro das suas bagas,
e o sumo delas me escorre pelos lábio, que beijas,

na procura incessante dos horizontes para além dos quais me perdi



Susana Duarte
Blog Terra de Encanto

Casal com movimento mecânico

Placa de madeira recortada e pintada, com um homem que se movimenta por trás de uma mulher posta de quatro, por um sistema de rodas dentadas.
Mexem-se muito... na minha colecção.





24 fevereiro 2014

«SexyMF» - performance por Ana Borralho & João Galante

Culturgest, Lisboa, Novembro de 2007

"sexyMF é uma performance de 13 artistas. Desenvolvido a partir de oficinas com as comunidades locais das cidades em que estamos presentes, este projecto tem como objectivo trabalhar e interagir com as pessoas fazendo-as participar, tanto na oficina e na actuação.
sexyMF é baseado no imaginário erótico, questionando as assimetrias que regulam as identidades sociais e as definições de masculino / feminino , o que provoca fortes emoções no espectador , confrontando-os/-as com personagens cujos corpos estão completamente expostos e que mostram uma muito óbvia ambiguidade sexual. Os 13 artistas (escolhidos entre as pessoas que frequentam a oficina) estão totalmente nuas, com as caras transformadas através de make-up, de modo a que cada um deles tenha um género diferente do corpo a que ele ou ela pertence. Sentado frente a frente com os 13 artistas, o público estabelece uma relação muito íntima e directa com eles, sem palavras, por um período indeterminado. Enquanto isso está a acontecer a audiência ouve, repetidamente, uma canção de amor com auriculares nos ouvidos (cada auricular tem uma canção diferente). O som ambiente é do canto de pássaros através de um amplificador de guitarra. Há também dois tocadores de violino ao vivo a tocar música clássica. É o espectador que define o tempo da performance, o tipo de relacionamento (escolhendo um determinado artista) e o momento em que ele / ela se vai embora. Todos os outros espectadores ficam à espera de uma cadeira. Como num jogo de voyeurismo, eles estão livres para observar o desempenho e as relações estabelecidas por outras pessoas do lado de fora, optando por participar mais tarde no desempenho ou não."


SexyMF, performance by Ana Borralho & João Galante from AnaBorralho JoaoGalante on Vimeo.

Luís Gaspar lê «Beijo» de João de Deus

Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente…
Vá!

Guardo segredo,
Não tenha medo…
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê!

Como ele é doce!
Como ele trouxe,
Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
Amor!

Saciar-me? louco…
Um é tão pouco,
Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
Amor!

Talvez te leve
O vento em breve,
Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor!

Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
Dois…

Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas…
Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três!

Três é a conta
Certinha e justa…
Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
Três!

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
Vês?
E não o deixam
Manchar, são… quantas?
Três!

João de Deus
João de Deus de Nogueira Ramos ( 8 de Março de 1830 — 11 de Janeiro de 1896), mais conhecido por João de Deus, foi um eminente poeta lírico, considerado à época o primeiro do seu tempo, e o proponente de um método de ensino da leitura, assente numa Cartilha Maternal por ele escrita, que teve grande aceitação popular, sendo ainda utilizado.

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

«conversa 2049» - bagaço amarelo

o edifício

Era estudante e estava sentado num muro à espera dum colega meu, na cidade do Porto. À minha frente uma série de prédios, relativamente recentes, pareciam alinhados para admirar a Lua cheia que surgira por trás deles. Nas ruas não havia quase nenhum movimento pedonal, mas sobravam automóveis para dar e vender.
Enquanto os prédios olhavam para a Lua, eu olhava para eles. As luzes interiores davam sinais de vida a um ritmo lento e, das janelas mais baixas, era possível ouvir alguns sons domésticos. As famílias que ali moravam começavam a jantar e eu, sozinho, continuava à espera que o meu colega chegasse. Dei-me conta de que, instintivamente, imaginara a vida de todas aquelas pessoas duma forma estereotipada. Para mim, todas as famílias que ali moravam eram compostas por um casal heterossexual e um ou dois filhos, com a mulher de avental e o marido a chegar a casa um pouco depois dela, já com a janta na mesa. Todos discutiam temas banais, como a política de panfleto ou um jogo de futebol qualquer.
O meu colega acabou por não aparecer e eu, sem perceber exactamente como, fiquei ali até os edifícios se confundirem com o céu escuro e cada uma das minhas famílias estereotipadas adormecer. A verdade é que não dei pelo tempo a passar.
Na noite seguinte saí com alguns amigos e fui a um bar perto da Ribeira que eu gostava muito. Era calmo o suficiente para se poder ter uma conversa e movimentado quanto baste para não nos sentirmos isolados do mundo. Quando me virei para o balcão, para pedir a segunda cerveja, uma mulher que estava noutra mesa levantou-se e veio ter comigo. Perguntou-me se tinha sido eu a passar a noite anterior inteira sentado num muro que dava para a janela dela. Que sim, respondi, e expliquei-lhe a história toda.
Também ela me tinha visto da mesma forma estereotipada. Estando eu ali, toda a noite sozinho em frente a um edifício, só podia estar apaixonado por alguém que não me ligava nenhuma. Estaria numa de sofrimento, à espera que um milagre se desse e a minha paixão viesse à janela.

- Estava só à espera dum colega que não apareceu... - disse.

Eu e a Ana ficámos amigos. Provavelmente, e digo isto sem certezas, vivemos uma amizade tão intensa quanto incomum. Sei que sempre que entrei na casa dela, durante os anos em que fomos próximos, pensei em como a minha percepção da vida naquele edifício tinha sido errada. Quanto mais não seja, a Ana mostrou-me isso. Agradeço-lhe.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Coelhinho, se eu fosse como tu…

Pegava essa cenoura e colocava ela na salada.



Boa recuperação, coelho!

Capinaremos.com