Era estudante e estava sentado num muro à espera dum colega meu, na cidade do Porto. À minha frente uma série de prédios, relativamente recentes, pareciam alinhados para admirar a Lua cheia que surgira por trás deles. Nas ruas não havia quase nenhum movimento pedonal, mas sobravam automóveis para dar e vender.
Enquanto os prédios olhavam para a Lua, eu olhava para eles. As luzes interiores davam sinais de vida a um ritmo lento e, das janelas mais baixas, era possível ouvir alguns sons domésticos. As famílias que ali moravam começavam a jantar e eu, sozinho, continuava à espera que o meu colega chegasse. Dei-me conta de que, instintivamente, imaginara a vida de todas aquelas pessoas duma forma estereotipada. Para mim, todas as famílias que ali moravam eram compostas por um casal heterossexual e um ou dois filhos, com a mulher de avental e o marido a chegar a casa um pouco depois dela, já com a janta na mesa. Todos discutiam temas banais, como a política de panfleto ou um jogo de futebol qualquer.
O meu colega acabou por não aparecer e eu, sem perceber exactamente como, fiquei ali até os edifícios se confundirem com o céu escuro e cada uma das minhas famílias estereotipadas adormecer. A verdade é que não dei pelo tempo a passar.
Na noite seguinte saí com alguns amigos e fui a um bar perto da Ribeira que eu gostava muito. Era calmo o suficiente para se poder ter uma conversa e movimentado quanto baste para não nos sentirmos isolados do mundo. Quando me virei para o balcão, para pedir a segunda cerveja, uma mulher que estava noutra mesa levantou-se e veio ter comigo. Perguntou-me se tinha sido eu a passar a noite anterior inteira sentado num muro que dava para a janela dela. Que sim, respondi, e expliquei-lhe a história toda.
Também ela me tinha visto da mesma forma estereotipada. Estando eu ali, toda a noite sozinho em frente a um edifício, só podia estar apaixonado por alguém que não me ligava nenhuma. Estaria numa de sofrimento, à espera que um milagre se desse e a minha paixão viesse à janela.
- Estava só à espera dum colega que não apareceu... - disse.
Eu e a Ana ficámos amigos. Provavelmente, e digo isto sem certezas, vivemos uma amizade tão intensa quanto incomum. Sei que sempre que entrei na casa dela, durante os anos em que fomos próximos, pensei em como a minha percepção da vida naquele edifício tinha sido errada. Quanto mais não seja, a Ana mostrou-me isso. Agradeço-lhe.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»