– Que ar é esse?
– Que ar?
– Esse, essa espécie de aparvalhado contentamento deslumbrado.
– Nem queiras saber.
– Apareceu comprador para a casa?
– Não.
– Arranjaste uma casa para te mudares?
– Não.
– Sabes o que eu acho?
– Não.
– Acho que as pessoas quando se divorciam devem mudar-se logo.
– É capaz. Mas por mim está tudo bem.
– Tudo numa boa?
– Na maior.
– Estiveste a fumar alguma coisa ou quê?
– Achas?!
– Sei lá, essa espécie de aparvalhado contentamento deslumbrado não é normal.
– A minha tarde não foi normal, se calhar é por isso.
– Não deve ter sido… Não deve ter sido nada normal, não. Mas, se queres saber, isso não me interessa nada! Vou jantar.
– Se queres saber…
– Não quero…
– Hoje fiz uma sanduíche!
– Boa!... Eu fiz sopa.
– Ah! Não… Não foi uma sanduíche dessas.
– Não?! Então foi de quais?
– Das outras.
– Quais outras?
– Daquelas… Tu sabes: uma sanduíche! Uma san-duí-che, estás a ver?
– Não devo estar, porque o que eu vejo não justifica esse aparvalhado contentamento.
– Uma sanduíche humana, bolas!
– Com pessoas?
– Sim, com duas pessoas, ou melhor, com duas mulheres!
– Ah!
– E a tua sopa?
– A minha sopa?!
– Sim, a sopa que fizeste é de quê?
– Vens me dizer que estiveste a fazer uma sanduíche e agora queres saber do que é a sopa que eu fiz?
– Sim. Um homem não vive só de sanduíches.
– Estou a ver. Ou melhor, não estou, nem quero ver nada!
– Tu é que perguntaste.
– Pois fui mas depois disse-te que não queria saber.
– Foi… E, afinal, a sopa é de quê?
– De legumes.
– Ah… De legumes… hmmm…
– E, na sanduíche, tu eras exactamente o quê? Uma desenxabida fatia de fiambre de peru magro fora do frigorifico há três dias?
– Qual peru, qual carapuça!... Eu era a carne! Carrrrne!
– E elas eram o pão?
– Sim, supostamente. Se era uma sanduíche.
– E foi em carcaça?
– Foi em carcaça, o quê?
– A sanduíche. Foi em carcaça ou em pão caseiro?
– Não estou a perceber… Não era pão! Não era uma sanduíche de pão.
– Sim, eu sei. Já me disseste, foste tu e duas mulheres. Tu eras a carne e elas eram o pão. Uma espécie de bifana.
– Sim.
– No prato?
– No prato?!
– Bolas! Se a bifana foi servida num prato, foi?
– Não era uma bifana…
– Ou uma sanduíche, é o mesmo. Foi no prato?
– Mas não era uma sanduíche, não havia prato. Éramos nós três.
– Tu e duas mulheres?
– Sim…
– Deitados?
– Ah!... Também… Porquê, no prato era se estávamos deitados?
– Era. Tu eras a carne e tinhas uma fatia de pão por baixo e outra por cima?
– Tinha!
– Coitada da fatia de baixo.
– Coitada?!
– Sim, ter de gramar contigo em cima e ainda com uma fatia de pão por cima a fazer mais peso… Que pouca sorte.
– Ah! Não, quando estivemos deitados foi de lado.
– Tipo cachorro…
– Quente!
– Pão, tu e pão.
– Pois.
– Pelo menos tinhas as costas aconchegadinhas…
– Achas que eu me importava com isso!?
– Sei lá, nunca fiz uma sanduíche. E empurrava-te?
– Quem é que me empurrava?
– A fatia de trás.
– Se me empurrava?
– Sim, contra a fatia da frente. Empurrava?
– Se calhar… Acho que sim… Esfregava-se, pelo menos.
– A fatia de trás esfregava-se em ti e tu esfregavas-te na fatia da frente.
– Sim… Mas isso dito assim…
– Como?
– Nada. Não interessa… Esquece a sanduíche.
– É o que eu mais desejo!
– Ainda há sopa?
– Se eu ainda tenho da sopa que fiz?
– Sim. Há?
– Tens.
– Tenho?
– Não. Não é “Há?”, é “tens?”. A sopa é minha, não é nossa.
– Era só uma forma de dizer.
– Acredito, mas não é a forma correcta.
– Ainda tens sopa?
– Tenho.
– Posso comer uma tigelinha?
– O quê?
– Se posso comer uma tigela de sopa.
– Podes, por mim podes. Podes comer as tigelas que quiseres! Podes mesmo comeres todas as tigelas que conseguires do armário da esquerda! Essas são todas tuas!
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