A Teresa Bizarro, que já tinha oferecido cinco pérolas de José Vilhena para a minha colecção, encontrou nos seus papéis umas 'cantigas' que lhe "foram oferecidas há mais de quarenta anos, com uma letra malandreca, mas muito decentinha" e que "foram cantadas em feiras pelo norte do país há muitos anos". E explicou-me a origem:
"A história, que me foi contada pela senhora, é a seguinte:
A Letinha, filha de uma família de lavradores ricos do norte do país, nasceu cega, há mais de cem anos.
Com pouco o que ensinar a uma menina cega, os pais mandaram a pequena aprender música; como ela me contava: «quiseram ensinar-me uma coisa que se encavava debaixo dos queixos, mas eu não gostei daquela merda!»
Deu preferência à viola, que tocava muito bem, ouvi-a eu, já ela tinha mais de oitenta anos.
A Letinha cresceu, com uma ranchada de irmãos e, em determinada altura, apareceu um marmanjão que se propôs casar com ela e dar-lhe uma 'bela vida' - com o dote que os pais lhe deram, evidentemente.
Quando o dote acabou (em putas e vinho verde) e os filhos entretanto nascidos continuavam a pedir pão, ele tratou de a pôr a render: arranjou-lhe umas cantilenas mais ou menos desbragadas e, segundo ela dizia, a 'toque de muita porrada' obrigou-a a cantar e tocar pelas feiras de Trás-os-Montes, coisa que ela fez até ao dia em que acordou e o sentiu gelado na cama.
Ainda lhe perguntou: ó homem, tu mijaste-te? Mas como ele nem se mexeu, nem lhe respondeu, percebeu que o filho da puta já se tinha passado para o lado de lá...
Passou então a viver com os filhos, já todos crescidos e deixou as cantigas - mas passou-as à neta mais velha e a mim, com a história que nos contou enquanto fazia meias com cinco agulhas sem errar nas malhas!
Como vês, uma historieta singela, igual a tantas outras que se ouvem por aí, mas que me foi contada (e as cantigas cantadas, acompanhadas pela viola) em primeira mão e nunca esqueci. A Letinha morreu há cerca de quarenta anos.
A história da Letinha, foi-me contava por ela mesma, em 1971 e confirmada pela filha mais velha, com quem ela viveu nos últimos anos; as cantigas, foram-me 'cantadas' acompanhadas à viola, em dois serões inesquecíveis e, dias depois, ditadas à neta mais velha, que as dactilografou para mim. Tiveram que ser lidas depois de dactilografadas, por isso há uma parte acrescentada à mão numa delas: a Letinha tinha-se esquecido desse pedaço da cantiga...Eu preferi oferecer os 'documentos' tal como me foram entregues, acrescidos de umas manchas de um Porto de 1958 cuja garrafa se partiu sobre a caixa onde guardava estas e outras 'preciosidades'.
Só não ofereço a fotografia que tenho com a Letinha...
Exactamente por pensar que as cantigas não valem nada sem a história de vida da Letinha, é que eu a contei..."
As letras dessas cantigas das feiras passaram a fazer parte da colecção de arte erótica «a funda São»: