28 maio 2016

«O corcunda» - por Rui Felício

Naquele tempo eu morava perto da Polygram, onde trabalhava o António Avelar Pinho, casado com uma prima minha.
Muitas vezes ao fim do dia ia até lá conversar, passar um bocado. Por ali passavam artistas da editora que fiquei a conhecer. O Paulo de Carvalho, o Herman José, o Carlos do Carmo, as Doce…
Era ali visita frequente, um corcunda que levava de vez em quando para avaliação do ToZé Brito umas cassetes com canções da sua autoria, na esperança de um dia serem gravadas em disco. O bom coração do ToZé Brito impedia-o de lhe dizer que as canções não tinham a mínima qualidade. Com essa sua proverbial bondade, ia mantendo, sem querer, as esperanças do corcunda.
Um dia, talvez em meados da década de oitenta, a Polygram ofereceu-lhe um bilhete na primeira fila do Coliseu dos Recreios para um espectáculo que ali ia dar a cantora brasileira Elba Ramalho.
Aprontou-se o melhor que pôde com o seu fato domingueiro, desceu do Metro nos Restauradores e caminhou até à Rua das Portas de Santo Antão. Nunca tinha entrado no Coliseu. Ficou especado à porta do edifício, com o bilhete na mão, durante largos minutos. Por ele via passar, rindo, apressados, em direcção à escadaria, homens e mulheres, eufóricos, alegres. Resolveu segui-los até uma das portas ao cimo da escadaria. Um porteiro fardado mirou-o de alto a baixo, pegou no bilhete, rasgou-lhe uma ponta e disse-lhe:
- Porta C, 1ª fila, lugar nr. 2!
Na dita Porta um outro empregado conduziu-o até ao lugar marcado, devolveu-lhe o bilhete e ficou uns segundos de mão aberta estendida.
O corcunda, olhou-o uns instantes, apertou-lhe a mão, e cumprimentou-o, dizendo:
«Auto das Danações»
Peça de teatro sobre os tempos modernos
mas à moda de Gil Vicente
baseada numa ideia de Paulo Moura
Jorge Castro, Apenas livros edições, 2007
(edição especial - a funda ediSão)
Colecção de arte erótica «a funda São»
- Muito obrigado!
Abre-se o palco inundado de luz, ao som dos acordes dos músicos. Elba Ramalho entra sorridente, esfuziante, cabelo farto aos caracóis, com um vestido colorido que deixava ver, bem acima dos joelhos, um par de pernas bem torneadas, e mais acima uns seios palpitantes, apetecíveis.
O corcunda revolvia-se na cadeira. Os olhos não se despegavam das curvas daquela bela mulher! Nas últimas noites tinha sonhado com ela, imaginava as caricias que lhe faria se, por uma noite que fosse, a tivesse na cama a seu lado. Mas disforme como a Natureza o tinha feito, sabia bem que nunca poderia aspirar a tal!
Entregue aos seus pensamentos, nem reparou que a Elba Ramalho já descia do palco e cantava na plateia, deambulando pelo meio dos espectadores.
Aproximou-se dele, sentou-se-lhe ao colo, passou o braço em redor dos seus ombros, enquanto cantava, olhando sensualmente para ele:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo
Fosse a sua casa
O corcunda nem queria acreditar! Todos os músculos do corpo estavam tolhidos, Olhando-a, a boca retorcida, a marreca mais pronunciada, apenas conseguiu articular um som rouco, quase ininteligível, como que em resposta aos versos da cantora:
- Sim, sim. No fim do espectáculo?

Rui Felício
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