17 julho 2016

«coisas que fascinam (193)» - bagaço amarelo

Hoje perdi as minhas chaves e atrasei-me a um encontro por causa disso. Tinha a porta de casa aberta mas sabia que, se saísse, não voltava a entrar facilmente. Infelizmente, o mundo não está virado para sairmos e deixar o que é nosso ao Deus-dará. Procurei nos bolsos das calças que tinha atirado para dentro da máquina de lavar, nas confusas estantes do meu quarto e no labirinto desarrumado da sala de estar. Nada. Demorei um quarto de hora a perceber que estavam no bolso do casaco que eu havia de vestir assim que saísse, talvez porque os lugares onde procurei primeiro fossem os mais óbvios.
Podemos perguntar também onde está o nosso Amor quando não sabemos dele. É legítimo. Às vezes o Amor é apenas algo que se perdeu e tudo o que se perde pode encontrar-se de novo. Se não pode, pelo menos faz bem acreditar que sim. Acreditemos que é uma questão de procurar, então. Mesmo que não seja, claro.
Cheguei atrasado porque tinha demorado a encontrar as minhas chaves de casa. Ela não se chateou, pelo menos a julgar pelo sorriso largo que fez assim que abriu a porta. Abraçou-me e deu-me a mão, como se eu precisasse de um guia para os dez metros que distanciam a porta de entrada da casa dela da sala. Depois largou-me como se larga um balão de ar quente e eu não voei. Fiquei ali, preso ao doce suor da mão dela.
Tirou-me um café com um fundo de aguardente, pôs música a tocar no velho rádio que conheço do tempo em que ela me dava a mão todos os dias e esticou as almofadas que adornam o sofá. O gato dela resmungou um pouco e depois assumiu a propriedade de uma delas. Ri-me. Ela também.
Ali, numa sala que já foi minha, procurei o meu Amor como se procura um objecto qualquer. Até o procurei nos olhos claros dela e nos cabelos que voavam em electricidade estática. Procurei-o em cada canto da memória, mas não o encontrei nestes lugares óbvios. Já não está lá.
Talvez esteja mais perto de mim, numa espécie de bolso de casaco que hei-de vestir outra vez um dia destes.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»