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01 junho 2019

«Hora de ponta» - Fernando Gomes

Autocarro à cunha. Sob o vestido, uma mão afaga-lhe o interior da coxa. Estremece. A mão sobe. Suspira. Os dedos crispam-se. Geme. Travagem brusca. Acorda. A saída ainda tão longe, e todos os olhos postos nela.

Fernando Gomes

25 maio 2019

«O lobo bom» - Fernando Gomes

Depois de escapar dos contos infantis, o lobo mau decidiu tornar-se bom. Renunciou à vida de carnívoro e enrabichou-se pela cozinha vegetariana do Grimm’s, afamado restaurante na orla do bosque, onde consome grande parte do tempo. Todavia, sempre que vê passarem meninas tenrinhas de visita às avós, é traído pelo subconsciente e pede um capuccino vermelho.

Fernando Gomes

18 maio 2019

«Reacção» - Fernando Gomes

Aos poucos, o tempo foi-lhes corroendo a cumplicidade, as trocas de olhares que nada deixavam por dizer, enfim, a química que os mantinha vivos. Quando ela se esgotou, reagiram, entregando-se a uma relação puramente física. Uma vez mais, valeu-lhes a Ciência.

Fernando Gomes

11 maio 2019

«A verdadeira mentira» - Fernando Gomes


O técnico acaba de ligar o último eléctrodo no indicador direito de Romualda. Na outra ponta do cabo, o polígrafo aguarda os sinais que uma alma nervosa em breve lhe transmitirá. A tarde televisiva anseia por saber se ela traiu ou não o marido com um desconhecido que há meses lhe envia poemas de amor pelo correio – cartas manuscritas, à moda antiga.
As perguntas começam. Genéricas, primeiro; depois, concentradas no motivo que a levou a expor ao mundo a sua intimidade: provar ao marido que não é adúltera. Enquanto decorre o teste, voltam a doer-lhe os pontapés que encaixou quando o seu homem descobriu aqueles versos doces que ela estupidamente decidira guardar num canto do roupeiro. Responde a mais uma pergunta e sente, de uma só vez, todas as bofetadas sofridas quando negou ter-se deitado com alguém que – pela mãezinha que Deus tem – nem sequer sabe quem é.
O programa e o suplício continuam. As câmaras, cirúrgicas, a cada resposta dada focam, na primeira fila da assistência, o marido tentando disfarçar o nervosismo com um olhar impenetrável. Exame terminado, e o público irrompe em palmas mal a apresentadora introduz uma pausa para compromissos comerciais. A emissão retorna com a peremptória verdade do detector de mentiras: desde que se casou, Romualda não se envolveu sexualmente com o amoroso poeta, nem com mais ninguém. O técnico acrescenta que esta mulher é de uma fidelidade inexcedível. «A máquina não mente», assegura.
Pela primeira vez, o marido solta um sorriso, de pronto capturado num close-up da câmara 2. O público aplaude violentamente quando ele se levanta e corre a abraçar a mulher. A volatilidade televisiva, todavia, não perdoa. A emissão encontra-se já na casa de uma senhora algarvia que tenta desesperadamente ganhar mil euros em cartão. Os telespectadores não chegam a ver Romualda esquivar-se ao abraço enquanto chama bruto ao marido e o censura por não ter acreditado na palavra dela. Só os figurantes assistem àquele momento pungente, sancionando as palavras da mulher com meneios e trejeitos.
A verdade que eles nem sonham é que não falta muito para que ela esteja no quarto do poligrafista. Ambos irão, uma vez mais, passar momentos prazerosos na mesma cama onde ele, há anos, se entretém a escrevinhar versos de amor para seduzir mulheres de nomes invulgares.

Fernando Gomes

04 maio 2019

«O perigo da cirurgia estética» - Fernando Gomes


O cirurgião tirara-lhe uns bons vinte anos, após três liftings, cinco peelings, uma rinoplastia, três blefaroplastias, um vibrolipossucção à papada e dois implantes – um capilar, outro de silicone no queixo. Enfim, três semanas de internamento, mascarado de múmia e alimentado por uma palhinha, que lhe mudariam a vida para sempre.
Teve o primeiro sobressalto na manhã em que regressou da clínica: o seu fiel pastor alemão, não o reconhecendo, quase lhe esfacelou a nova face num ataque feroz. O pior, contudo, estava para vir. Via-se tão diferente, que se lhe tornou insuportável a naturalidade com que a sua mulher se deitava com outro homem, ainda por cima com a aparência do seu filho. Começou a sentir-se traído por ele mesmo e entrou em profunda depressão. O pavor de poder vir a ser referido pela vizinhança como «o corno de si próprio» causava-lhe tanto sofrimento, que o simples acto de palmilhar dez metros de calçada para despejar o lixo o atulhava de vómitos e diarreia.
Em consequência dos incontáveis distúrbios psicossomáticos, os pontos relaxaram, os repuxões vacilaram, a pele estremeceu, e a cabeça distendeu-se para uma vez e meia o tamanho original. Partiu todos os espelhos de casa e nunca mais saiu. Embrulhou-se num desespero crónico e viciou-se em debates televisivos e programas de opinião política. Viveu o resto dos seus dias na cama, irreconhecível, de telecomando na mão, balbuciando frases desconexas de Paulo Portas, Mariana Mortágua, Marques Mendes e Pacheco Pereira.

Fernando Gomes

27 abril 2019

«Diário de uma assassina» - Fernando Gomes

Posicionei-me no terraço do prédio da frente. Dali tinha uma boa visão da zona do escritório onde estava o telefone. Afinei a mira telescópica e fiz a chamada. O aparelho tocou, tocou, mas ninguém atendeu. Eu sabia que ela estava em casa àquela hora e liguei de novo. Nada. Finalmente, à terceira tentativa, entrou um homem de roupão vermelho. Não era o meu alvo. Ela veio logo atrás, nua. Com beijos arrebatadores, fê-lo ignorar os toques e debruçou-se sobre a secretária, convidando-o a possuí-la mesmo ali. Resolvi esperar. Adoro ver pessoas a fazer sexo, e aquele espectáculo sabia-me a bónus. O mafioso que me contratou estava certo: a mulher tinha um amante. E que amante, que homem vigoroso ele era... Felizmente, o meu contrato não o incluía. Seria um crime tirar a vida àquele corpo tão másculo. Fiquei imóvel, em êxtase, a mirá-los, até que a tatuagem estampada no braço dele me despertou. Afundei o olho na mira e não queria acreditar. Era o meu marido. O meu marido a aplicar ao meu alvo os mesmos movimentos firmes e profundos com que me tinha brindado horas antes. Atirei nela primeiro, que negócios são negócios. Um tiro certeiro que lhe despedaçou a têmpora esquerda. Depois, despejei nele as restantes munições. Com o dia ganho, senti uma felicidade invulgar invadir-me. Há muito tempo que não disparava por prazer.

Fernando Gomes

20 abril 2019

«Esqueleto» - Fernando Gomes

Resiste, há anos, naquele esconso imundo, sem uma réstia de luz que lhe desamarre os movimentos. Sonha fugir dali, sentir nos ossos a pele de quem ama e voltar a viver... mas é tão difícil sair dos armários da alma.

Fernando Gomes

13 abril 2019

«O atraso» - Fernando Gomes


Juvénio só pensa em encontrar a belíssima hospedeira que tão gentilmente lhe respondeu no curto diálogo que travaram durante o embarque:
— Desculpe, este voo está mais de uma hora atrasado, e a minha escala para apanhar o próximo é só de meia hora. Acha que chegamos a tempo?
— Sim, claro, não se preocupe!
— Tem a certeza? Estou muito apreensivo.
— Esteja descansado! Garanto que apanhará o outro avião.
O sorriso radioso colado aos olhos transbordantes de azul serenou-o.
Segundos depois, ao tomar o lugar na coxia, o atraso já não o apoquentava. Estava na quarta fila e não conseguia descolar os olhos da graciosa figura que ia cumprimentando os passageiros um a um. Não fosse a importância da viagem de negócios, desejaria que o atraso fosse eterno, que nada o separasse de tão celeste visão. O rumor dos passageiros que se acomodavam, o ronco dos motores, o choro do bebé duas filas atrás, tudo lhe soava longínquo e etéreo. Aquela beleza ofuscante arrebatava-o.
Aquando das instruções de segurança, a deusa posicionou-se tão perto dele, que Juvénio conseguia sentir na alma os gestos largos e mecânicos. Antes de guardar o equipamento de demonstração, ela piscou-lhe o olho e sorriu. Ele corou e engoliu em seco, mergulhado em suor. Pouco depois da descolagem, a beldade veio fazer-lhe companhia num sonho erótico, que, como de costume, ele não conseguiu consumar. Acordou sobressaltado entre gritos lancinantes e rezas aflitas. Antes que conseguisse aperceber-se da terrível força que a gravidade resolvera demonstrar, já se via rodeado por um Atlântico infinito.
Atordoado, tenta agora, desesperadamente, manter-se à tona e, acima de tudo, encontrá-la entre os destroços. Se ao menos tivesse ouvido as instruções de como insuflar o colete... De súbito, vislumbra a sereia, à deriva, flutuando na ponta quebrada de uma das asas. As forças a fugirem-lhe, consegue chegar suficientemente perto dela para soltar o que lhe vai no peito, antes de imergir para sempre no oceano devorador. Com a voz sufocada dos pirolitos, grita-lhe as últimas palavras:
— Sua mentirosa!

Fernando Gomes


06 abril 2019

«À cautela» - Fernando Gomes

Jerivaldo tinha doze anos quando, ao espreitar pela fechadura da casa de banho, viu a madrasta nua no duche. Da esbelta figura, saltaram-lhe à vista os fartos seios e um orgulhoso membro, bem maior que o do pai. Esse momento marcá-lo-ia para sempre. Ainda hoje, casado para mais de quinze anos, espia a sua mulher a tomar banho, não vá o Diabo tecê-las.

Fernando Gomes

30 março 2019

«O carvalho» - Fernando Gomes

No fim do trilho dos malmequeres, perto da ribeira, vivia o imponente carvalho, secular testemunha de segredos obscenos e traições conjugais. Quando, na véspera do fim do mundo, as árvores adquiriram o dom da fala, o povo foi ao seu encontro, unido como nunca, agitando serras e machados. Naquela última noite, com todos os pecados feitos em lenha, a aldeia inteira dormiu em paz.

Fernando Gomes

23 março 2019

«O assalto» - Fernando Gomes

O assalto mal sucedido acabou com o gatuno barricado no banco. Lá fora, a polícia já cercou as instalações e tenta saber o máximo acerca da situação. O negociador prepara-se, posicionam-se os atiradores especiais. O assaltante está agitado, fez dezenas de reféns e começa a contá-los para se acalmar. Quando a contagem termina, fica ainda mais excitado. Sessenta e nove. É a primeira vez que se vê nesta posição.

Fernando Gomes


16 março 2019

«Eça tem Graça» - Fernando Gomes

No Largo Barão de Quintela, em Lisboa, a dois passos do Camões, ergue-se a estátua de Eça de Queiroz (1845-1900), obra de António Teixeira Lopes (1866-1942), inaugurada três anos após a morte do escritor. Devido a frequentes actos de vandalismo, a escultura original, em mármore, encontra-se no Museu da Cidade desde 2001, tendo sido substituída por uma réplica em bronze. Gravada na base do monumento, a frase que inspirou o escultor gaiense, retirada d’A Relíquia: Sobre a nudez forte da verdade, o manto diaphano da phantasia.

Consta que um velho criado da família da mulher de Eça, levado a ver a obra, terá dito:
— O patrão está bem, mas nunca pensei que a senhora dona Emília se prestasse a estas figuras.



09 março 2019

«Nova paixão» - Fernando Gomes

Na empresa, todos sabem que o chefe anda louco pela nova secretária. Está tão viciado na sua beleza exótica, que não consegue passar as horas de expediente longe dela. Há dias, a porta acidentalmente entreaberta do gabinete entregou à senhora da limpeza um insólito quadro: ele, de olhos revirados e respiração ofegante, roçava-se naquelas pernas longas, esculturalmente delineadas. Foi um nada até começar a ser bombardeado pelos risinhos trocistas dos subordinados. É claro que o chefe, que é tudo menos parvo, percebeu e tomou providências. Cortou-lhes os prémios por objectivos e passou a trancar-se todos os dias para não ser incomodado por olhares mexeriqueiros quando, extático, massaja a sua paixão com óleos raros, próprios para mogno.

Fernando Gomes