11 maio 2019

«A verdadeira mentira» - Fernando Gomes


O técnico acaba de ligar o último eléctrodo no indicador direito de Romualda. Na outra ponta do cabo, o polígrafo aguarda os sinais que uma alma nervosa em breve lhe transmitirá. A tarde televisiva anseia por saber se ela traiu ou não o marido com um desconhecido que há meses lhe envia poemas de amor pelo correio – cartas manuscritas, à moda antiga.
As perguntas começam. Genéricas, primeiro; depois, concentradas no motivo que a levou a expor ao mundo a sua intimidade: provar ao marido que não é adúltera. Enquanto decorre o teste, voltam a doer-lhe os pontapés que encaixou quando o seu homem descobriu aqueles versos doces que ela estupidamente decidira guardar num canto do roupeiro. Responde a mais uma pergunta e sente, de uma só vez, todas as bofetadas sofridas quando negou ter-se deitado com alguém que – pela mãezinha que Deus tem – nem sequer sabe quem é.
O programa e o suplício continuam. As câmaras, cirúrgicas, a cada resposta dada focam, na primeira fila da assistência, o marido tentando disfarçar o nervosismo com um olhar impenetrável. Exame terminado, e o público irrompe em palmas mal a apresentadora introduz uma pausa para compromissos comerciais. A emissão retorna com a peremptória verdade do detector de mentiras: desde que se casou, Romualda não se envolveu sexualmente com o amoroso poeta, nem com mais ninguém. O técnico acrescenta que esta mulher é de uma fidelidade inexcedível. «A máquina não mente», assegura.
Pela primeira vez, o marido solta um sorriso, de pronto capturado num close-up da câmara 2. O público aplaude violentamente quando ele se levanta e corre a abraçar a mulher. A volatilidade televisiva, todavia, não perdoa. A emissão encontra-se já na casa de uma senhora algarvia que tenta desesperadamente ganhar mil euros em cartão. Os telespectadores não chegam a ver Romualda esquivar-se ao abraço enquanto chama bruto ao marido e o censura por não ter acreditado na palavra dela. Só os figurantes assistem àquele momento pungente, sancionando as palavras da mulher com meneios e trejeitos.
A verdade que eles nem sonham é que não falta muito para que ela esteja no quarto do poligrafista. Ambos irão, uma vez mais, passar momentos prazerosos na mesma cama onde ele, há anos, se entretém a escrevinhar versos de amor para seduzir mulheres de nomes invulgares.

Fernando Gomes

2 comentários:

  1. A mentir, que seja bem metida, resultado assegurado, sem consequências e dos que fiquem a pensar,
    Que mentiroso!
    desses, não reza a história.

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    1. São Rosas6/6/19 14:18

      Não sei se ser mentiroso é vantajoso...

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